domingo, 15 de julho de 2012

Borges e o pronome "se"



No caderno de cultura de um jornalão, o resenhista de livros escreveu sobre dois lançamentos editoriais: "A Editora Globo reedita, em volumes separados, dois clássicos borgianos: Elogio da Sombra (1969) e O Informe de Brodie (1970). Tratam-se das mesmas traduções que a Globo havia editado em Jorge Luis Borges - Obras Completas (1999)."
"Tratam-se" das mesmas traduções? Distração do resenhista. Ele fez com o verbo "tratar" o que o governo faz com o povo. Para ser mais preciso, ele tratou o verbo "tratar" - que nesse sentido exige preposição para ligar-se ao complemento - como se fosse verbo que não precisa de preposição. Na verdade, confundiu duas estruturas marcadas pelo pronome "se".
Primeira estrutura: alugam-se deputados, vendem-se senadores por preço convidativo; ouviam-se cochichos de políticos pedindo os 20 % usuais; consertam-se mentes poluídas pela militância política. Nessa estrutura, nota-se que o verbo vai para o plural.
Segunda estrutura: trata-se de senadores honestíssimos, precisa-se de deputados decentes; tratou-se de anúncios malfeitos; tratava-se das mesmas traduções. Nessas frases, nota-se que há um "de" e o verbo fica na terceira pessoa do singular.
A primeira estrutura (alugam-se deputados etc.) é formada por verbos transitivos diretos, isto é, verbos que dispensam preposição para ligar-se ao complemento. É formada pelo verbo, mais o pronome "se", mais o sujeito. Sujeito plural, verbo no plural; sujeito no singular, verbo no singular. Nela, a palavra que se segue ao pronome "se" é o sujeito, que, obviamente, concorda com o verbo: aluga-se um deputado, vende-se um senador; vendem-se bananas; alugam-se bicicletas; arrendam-se políticos picaretas por bom preço.
Há sábios lingüistas zangados que discordam dessa análise; consideram-na ultrapassada e contrária ao fluir natural da língua, porque, dizem eles, as pessoas falam "aluga-se deputados, vende-se senadores". O "se", defendem, é um índice de indeterminação do sujeito; portanto, "deputados" e "senadores" não são sujeito e não têm de concordar com o verbo.
Como a maioria dos especialistas defende a primeira análise, de acordo com a tal de norma culta ou língua oficial, com ela convém ficar por enquanto: "senadores" e "deputados" nesse caso são sujeitos, sim, e o verbo transitivo direto deve concordar com o sujeito. Então, vendem-se votos, arrendam-se mandatos etc.
A segunda estrutura (Trata-se de senadores picaretas, precisa-se de pedreiros etc.) é formada por verbos transitivos diretos pronominais e ao mesmo tempo transitivos indiretos (TDpI). A preposição "de" que rege a palavra plural seguinte nos exemplos mostra que tal palavra não pode ser sujeito; é objeto indireto, por isso não há sentido na concordância do verbo com ela.
Na estrutura ("Trata-se de ex-prefeitos larápios" = verbo, mais pronome "se", mais preposição "de", mais palavra plural), portanto, o verbo fica sempre e sempre na terceira pessoa do singular. O sujeito é indeterminado: o pronome "se" torna indefinido o agente da ação verbal. Nesse caso, "se", é, pois, índice de indeterminação do sujeito. Já se vê por aí que o resenhista, encantado com Borges, distraiu-se no texto e misturou estruturas parecidas, mas diferentes. Coisas da vida.

Texto: Josué Machado
Jornalista e autor do livro Manual da Falta de Estilo (Ed. Best Sellers)

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