No caderno de
cultura de um jornalão, o resenhista de livros escreveu sobre dois lançamentos
editoriais: "A Editora Globo reedita, em volumes separados, dois clássicos
borgianos: Elogio da Sombra (1969) e O Informe de Brodie (1970). Tratam-se das
mesmas traduções que a Globo havia editado em Jorge Luis Borges - Obras
Completas (1999)."
"Tratam-se"
das mesmas traduções? Distração do resenhista. Ele fez com o verbo
"tratar" o que o governo faz com o povo. Para ser mais preciso, ele
tratou o verbo "tratar" - que nesse sentido exige preposição para
ligar-se ao complemento - como se fosse verbo que não precisa de preposição. Na
verdade, confundiu duas estruturas marcadas pelo pronome "se".
Primeira estrutura:
alugam-se deputados, vendem-se senadores por preço convidativo; ouviam-se
cochichos de políticos pedindo os 20 % usuais; consertam-se mentes poluídas
pela militância política. Nessa estrutura, nota-se que o verbo vai para o
plural.
Segunda estrutura:
trata-se de senadores honestíssimos, precisa-se de deputados decentes;
tratou-se de anúncios malfeitos; tratava-se das mesmas traduções. Nessas
frases, nota-se que há um "de" e o verbo fica na terceira pessoa do
singular.
A primeira
estrutura (alugam-se deputados etc.) é formada por verbos transitivos diretos,
isto é, verbos que dispensam preposição para ligar-se ao complemento. É formada
pelo verbo, mais o pronome "se", mais o sujeito. Sujeito plural,
verbo no plural; sujeito no singular, verbo no singular. Nela, a palavra que se
segue ao pronome "se" é o sujeito, que, obviamente, concorda com o
verbo: aluga-se um deputado, vende-se um senador; vendem-se bananas; alugam-se
bicicletas; arrendam-se políticos picaretas por bom preço.
Há sábios
lingüistas zangados que discordam dessa análise; consideram-na ultrapassada e
contrária ao fluir natural da língua, porque, dizem eles, as pessoas falam
"aluga-se deputados, vende-se senadores". O "se", defendem,
é um índice de indeterminação do sujeito; portanto, "deputados" e
"senadores" não são sujeito e não têm de concordar com o verbo.
Como a maioria dos
especialistas defende a primeira análise, de acordo com a tal de norma culta ou
língua oficial, com ela convém ficar por enquanto: "senadores" e
"deputados" nesse caso são sujeitos, sim, e o verbo transitivo direto
deve concordar com o sujeito. Então, vendem-se votos, arrendam-se mandatos etc.
A segunda estrutura
(Trata-se de senadores picaretas, precisa-se de pedreiros etc.) é formada por
verbos transitivos diretos pronominais e ao mesmo tempo transitivos indiretos
(TDpI). A preposição "de" que rege a palavra plural seguinte nos
exemplos mostra que tal palavra não pode ser sujeito; é objeto indireto, por
isso não há sentido na concordância do verbo com ela.
Na estrutura
("Trata-se de ex-prefeitos larápios" = verbo, mais pronome
"se", mais preposição "de", mais palavra plural), portanto,
o verbo fica sempre e sempre na terceira pessoa do singular. O sujeito é
indeterminado: o pronome "se" torna indefinido o agente da ação
verbal. Nesse caso, "se", é, pois, índice de indeterminação do
sujeito. Já se vê por aí que o resenhista, encantado com Borges, distraiu-se no
texto e misturou estruturas parecidas, mas diferentes. Coisas da vida.
Texto: Josué Machado
Jornalista e autor do livro Manual
da Falta de Estilo (Ed. Best Sellers)
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