domingo, 11 de setembro de 2011

Consciência não é pra todo mundo



Um Homem de Consciência


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.
            Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.
            Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o deperecimento visível de sua Itaoca.
            – Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...
            João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.
            – É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.
            Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...
            Ser delegado numa cidadinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca! ...
            João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou num cavalo magro e partiu.
            – Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
            – Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
            – Mas, como? Agora que você está delegado?
            – Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.
            E sumiu.

(Monteiro Lobato. Cidades Mortas. São Paulo, Brasiliense)


            Relendo a obra de Monteiro Lobato, o conto Um Homem de Consciência me chamou a atenção. Ao ler o pequeno texto, não pude deixar de me lembrar de expressões como “liberdade de expressão consciente”, “liberdade de ação consciente”, “responsabilidade profissional”, “responsabilidade social” e, principalmente, “consciência social” ou de qualquer coisa mais que o valha nesta linha de pensamento. E eu, aqui, reconhecendo as minhas limitações e “regalando-me da inteligência alheia”, reservo-me, ainda assim, o direito de tecer alguns comentários, positivamente válidos, creio eu, sobre o texto:
            Ao idealizar e fazer a tessitura do texto, ambientado em Itaoca, uma cidadezinha qualquer que simboliza o estado de São Paulo, Lobato, num bom exemplo de humor e ironia, teve a intenção de explicitar, principalmente, a decadência do Vale do Paraíba e toda a sua miséria e corrupção política. Porém a consciência de um João (com todo o respeito) acabou por alcançar dimensões universais e constituiu um modelo singular de responsabilidade, bom-senso e sabedoria que a maioria dos seres humanos nem sequer conseguem conceber. Mesmo frente a todas as adversidades e necessidades, como muitas vezes acontece conosco, João mostra-se João, ele não se nega, não se vende, muito embora tenha que atingir certas suscetibilidades.
            A mensagem que nos é deixada trata de idéias que, embora acreditando, negamos defender, falta-nos coragem; de posturas que, embora latentes em nós, temos vergonha de assumir, quando fazemos coisas piores e até nos orgulhamos. Numa sociedade que há muito, vergonhosamente, subverteu o conceito de moral e ainda vomita discursos velados acerca de “um processo de restauração da ética”, a mensagem de Lobato, por sua personagem, parece-nos sem importância; mas, para alguns, é degradante: “uma porretada no crânio”.
            João Teodoro, um simples e desimportante João, nos toca tão sutilmente que, aos mais desavisados, soa cômico, quando deveria despertar em nossa consciência um tom de orgulho: como é bom saber que existem pessoas sãs e honestas! Pena que seja apenas um mero e fictício João que, embora encontrando ecos em algumas almas, dificilmente será ouvido, que dirá entendido, exatamente por causa da depreciação de valores morais que já nos parecem tão distantes e soam deslocados na nossa tão nobre sociedade. Como disse Schopenhauer, Die Welt ist krank! E parece-me que alguns seres humanos estão mais doentes ainda. E o mais incrível: não sabem disso – ou fingem não saber!
            O nosso João poderia ter qualquer defeito, embora não fosse nada, não quisesse nada, não tivesse nada. Mas uma coisa é certa: autenticamente João sabia ser: era sensato, honesto, leal, responsável, humilde. Um exemplo de consciência inigualável a ser seguido. Um sábio, portanto. É o tipo de homem que, ao chegar em casa à noite e acomodar a cabeça no travesseiro, tem um sono tranqüilo e reparador.
            Revestir-se de atitudes semelhantes às de João, ingênuas, idealistas, sem egoísmos, é o que nos vai fazer que sejamos distintos, mais evoluídos, mais elevados. Como ele, João, sejamos nós. Sejamos unidos pela consciência única da responsabilidade e da boa índole, não pela prática de interesses egoístas, escusos, execráveis, que de maneira geral são tolos, torpes e ridículos. A vida e todas as suas relações com o seio social não são feitas disso! Tenhamos consciência do que somos, do que sabemos, do que fazemos, do que podemos e, sobretudo, do que poderemos vir a nos tornar. Pois quando alcançarmos o nível de consciência de João Teodoro, certamente seremos pessoas mais justas e dignas de respeito; enfim, pessoas melhores, e melhores também serão nossas instituições públicas. 
              
                                                                                                 Wallace Rocha

2 comentários:

Michael disse...

Tudo bem Wallace já sei, se o Governo me promover a Cel. Tenho AGORA a certeza que não vou aceitar!!! Minha consciência esta limpinha pacas, valeu pelo lembrete... rsrsrs

Wallace Rocha disse...

RS!