— ...para um cavalo?!
—
Isso mesmo: um cavalo!
—
Então é mesmo um cavalo a figura!
—
E o pior é que...
Este
era o diálogo de dois estudantes, que comentavam um acontecimento nada comum
envolvendo certo educador, ao ter este se deparado com a mirífica ideia de uma
classe de alunos revoltada com a sua metodologia de ensino.
O
caso é que o pitoresco e desastroso fato tinha ocorrido no dia anterior, tendo
sido o fatídico momento resultado de ânimos atritados por semanas de
descontentamento e discussões acerca das posturas e procedimentos da
pseudopedagogia praticada pelo “mestre do saber”, alcunha tanto elogiosa quanto
irônica com que foi agraciado o ilustre mestre, desde o primeiro contato com a
turma.
Havendo
ele, desde o início, se mostrado tão exibicionista quanto despreparado,
alternando momentos de falso saber com ignorância explícita, tentando
demonstrar provas de tudo com postulados autoritários que versavam sobre nada,
que só faziam sentido na sua falta de senso, logo conseguiu que a classe lhe
externasse os primeiros toques de amabilidade:
—
É uma MERDA!
O
seu despreparo era tamanho que, mesmo não se esperando que ele pudesse ir mais
longe, ainda assim ele surpreendia, se superava, fazendo comentários impróprios
sobre assuntos que não dominava e largando frases hilárias que uma criança
teria vergonha de dizer, bem como nós, que não as transcrevemos aqui para não
cairmos no mesmo erro.
O
tratamento científico por ele dado a certos assuntos era um mero reflexo de sua
cega vaidade e intransigente postura em não aceitar contestações. Quando isso
ocorria, embasbacava-se, ruborizava-se e apresentava argumentos nada
convincentes que só incentivavam a hilaridade contida nas entranhas dos alunos,
todos quase a explodir em risos. Mas para maior revolta da classe, a situação
piorava quando o mestre vingava-se em avaliações descriteriosas e mal
elaboradas que mais serviam para mostrar autoritarismo que para avaliar
conhecimento, coisa que pouco tinha, haja vista ser o seu saber o refugo do que
teria sido se tivesse estudado.
De
fato era um néscio, um néscio travestido de intelectual, do tipo detentor de um
saber duvidoso, demasiadamente intangível até para ele mesmo, pois tinha
dificuldade em alcançá-lo para transmiti-lo; um néscio que se valia de uma
retórica empolada, talvez arrancada de um desses manuais de categoria
inclassificável e também duvidosa que bem poderia se apresentar sob o pomposo
título de “Tudo que você precisa saber
para falar bem em público e não passar vergonha”.
Verdadeiramente,
atropelava a ortografia, a sintaxe e a semântica (estes três seres monstruosos)
com o pragmatismo de um trem desgovernado. Com erros absurdamente esdrúxulos,
que passeavam por todas as áreas do conhecimento, e servido de frases latinas
enferrujadas, extraídas de outro manual qualquer, que serviam tão somente para
aumentar a pompa do indivíduo, ressaltando a ignorância, pois se perguntassem a
etimologia do palavreado ele nada sabia dizer com clareza, foi assim consolidando
a sua nefasta e arrogante presença perante a classe, sem a mínima inquietação
da consciência ética, moral e intelectual, valores que certamente nem
cultivasse, já que essas coisas andam mesmo em falta no mercado.
Por
tudo isso e um pouco mais, é que o mestre e a classe travavam discussões
hercúleas a respeito de saber e não saber, como ou não ensinar, saber aprender
ou não, e o seu, para ele, o mestre, notável conhecimento, aumentado por ele
mesmo. Tudo, absolutamente tudo isso fazia que diminuísse a cada dia o pouco o
quase mais nenhum respeito que a classe pudesse ainda nutrir por ele. Até que
um dia, um aluno mais irreverente espetou com a verdade o orgulho do mestre:
—
O senhor não sabe ensinar! – disse, pondo-se firmemente de pé e com o dedo em
riste.
O
professor, com o “intelecto” sangrando embrutecimento, sem que pudesse formular
melhor resposta, certamente pela simples carência de algo que a turma tinha
certeza que ele não tinha, respondeu do mesmo modo, dedo em riste, desenhando
no ar um arco geométrico imaginário, coisa de que nem ele, um dia, tivesse
talvez ouvido falar, assim como as regras da boa gramática:
—
Vocês é que não sabe aprender! Ao longo da minha carreira, sempre foi assim. É
assim porque é assim, e pronto! – disse, sem a devida concordância gramatical e
contextual.
—
Realmente assim não é possível aprender! – declarou outro aluno.
De
insinuações a entreveros mais ásperos, o impasse acabou por culminar numa
discussão interminável da classe com o mestre, pois as declarações deste só
poderiam ter sido uma piada.
E
o mestre retomou o discurso:
—
Então digam aonde estamos errando?
—
Aonde
estamos? Xi! Errou de novo e duplamente! – disparou outro aluno
irritado, entre risos dos demais.
De fato, aonde
não era apropriado à frase, e estamos incluía a classe no erro, e
isso não era verdade, errava apenas o professor, duplamente!
— Não admito
gracinhas! – bradou o mestre, ruborizado, sem entender ao certo o motivo do
riso, pois do erro explicado acima a classe tinha ciência, já o mestre não,
claro!
— Não admito
gracinhas! – repetiu.
— Nem nós! –
reverberou um coro de alunos.
E deu-se que, no
ardor da discussão, um aluno mais irreverente ainda teve a espirituosa ideia de
relinchar. Este fato, como se não bastasse para adjetivar a figura do mestre,
suscitou a outro membro do corpo discente outra ideia não menos espirituosa,
acrescida de certa insolência, exagerada talvez, mas que veio bem a calhar.
De fato a ideia era
suficientemente contundente para que o mestre se reconhecesse – pelo menos isso
era o que se esperava – como o absurdo da ignorância perpetuada por quase um
século na Instituição da qual fazia parte. Naquele dia, porém, não houve como
executá-la, dada a situação daquilo que o “mestre do saber”, quase que
diariamente, insistia em chamar de aula.
Chegado o momento
adequado, no dia seguinte, o aluno da ideia mirífica chegou mais cedo, reuniu a
classe e explicou a todos o que tinha preparado para o mestre e disse:
— Então é isso!
— Sério?! –
perguntaram-lhe.
— Exatamente! Não se
assustem com a situação. O que está lá é realmente o que vocês vão ver! E não
precisa ter medo. É manso!
Ansiosos, todos
ficaram tomados de curiosidade pelo que iria acontecer.
Quando o professor,
na hora costumeira, assomou no corredor que dava acesso à sala de aula, para
impor por mais um dia a sua triste e medíocre figura, construída ao longo dos
seus trinta anos de carreira, avistou os alunos reunidos do lado de fora da
sala.
Mesmo imaginando que
teria que enfrentar a insólita turba – pelo menos esse foi o pensamento que lhe
atravessou o crânio – não perdeu a compostura (se é que tinha alguma) e rumou
para a sala.
Ao se aproximar dos
alunos, disparou:
— É motim?! Querem
boicotar a minha instrução, é isso?!
— Não, senhor! –
respondeu com firmeza o porta-voz do grupo e autor da ideia. – e com ironia,
concluiu: — Só lhe trouxemos um aluno à altura da sua notável pedagogia e
arrogância.
Ao entrar na sala, o
ilustre mestre se deparou com um cavalo... um cavalo tão negro quanto o seu
conhecimento.
O animal – refiro-me
ao cavalo – estava no meio do recinto, rodeado por cadeira vazias, à espera do
instrutor.
À primeira vista,
pode ter perecido ao equino que o instrutor era de outro mundo, de outra
espécie animal, mas tão logo o mestre começou a falar, os olhinhos do animal
começaram a serenar, o bicho meneou a cabeça, talvez procurando identificar-se,
e pareceu, no momento seguinte, sentir que aquela figura que falava lhe era bem
familiar.
Para o espanto dos
alunos, o animal – refiro-me agora ao mestre – dirigiu-se ao cavalo e começou o
seu ofício diário.
— Vamos começar pelo início. – disse, como se
começar por outro lado fosse fazer alguma diferença. E continuou, enquanto o
cavalo, já bem familiarizado, lhe olhava com um ar de solidariedade e olhinhos
brilhantes: — Como você sabe, a natureza é composta por dois grandes reinos: o
vegetal, que compreende as plantas; – e apontado para o cavalo e para si – e o
animal, do qual você e eu fazemos parte...
Do lado de fora, os
alunos não esperaram o resto da explicação. A última frase ouvida da boca do
mestre foi usada com a melhor das propriedades linguística em todas as
dimensões da linguagem: “...do qual você e eu fazemos parte...”.
Olhem só que maravilha!
Comprimiram o riso, e
um dos alunos disse:
— É... não tem jeito!
É pior do que imaginávamos. São mais de trinta anos de animalismo, de
paradigmas unilaterais doentios, de ideias fixas amareladas, enfim, de
embrutecimento. Isso é uma doença que vicia!
Algumas horas depois
da execução do plano e do último comentário do aluno, houve quem achasse a
ideia um tanto exagerada e descabida e quase saísse em defesa do professor, mas
não ousou levar adiante o intento, haja vista não querer ser tachado de
bajulador de ideias caducas.
Retiraram-se, só
restando mais comentários para o dia seguinte. E é neste dia que vamos
encontrar os dois alunos em diálogo, um narrando a outro de outra turma o
insólito fato:
— Aula para um
cavalo?!
—
Isso mesmo: um cavalo!
—
Então é mesmo um cavalo a figura!
—
E o pior é que... – sentenciou, ao ver passar ao lado o único aluno que achou a
ideia um tanto descabida - ...o pior é
que esse tipo sempre deixa discípulos!
Wallace Rocha
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