segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Uma ideia cavalar... ou o que quiserdes!

            — ...para um cavalo?!
            — Isso mesmo: um cavalo!
            — Então é mesmo um cavalo a figura!
            — E o pior é que...

            Este era o diálogo de dois estudantes, que comentavam um acontecimento nada comum envolvendo certo educador, ao ter este se deparado com a mirífica ideia de uma classe de alunos revoltada com a sua metodologia de ensino.
            O caso é que o pitoresco e desastroso fato tinha ocorrido no dia anterior, tendo sido o fatídico momento resultado de ânimos atritados por semanas de descontentamento e discussões acerca das posturas e procedimentos da pseudopedagogia praticada pelo “mestre do saber”, alcunha tanto elogiosa quanto irônica com que foi agraciado o ilustre mestre, desde o primeiro contato com a turma.
            Havendo ele, desde o início, se mostrado tão exibicionista quanto despreparado, alternando momentos de falso saber com ignorância explícita, tentando demonstrar provas de tudo com postulados autoritários que versavam sobre nada, que só faziam sentido na sua falta de senso, logo conseguiu que a classe lhe externasse os primeiros toques de amabilidade:
            — É uma MERDA!
            O seu despreparo era tamanho que, mesmo não se esperando que ele pudesse ir mais longe, ainda assim ele surpreendia, se superava, fazendo comentários impróprios sobre assuntos que não dominava e largando frases hilárias que uma criança teria vergonha de dizer, bem como nós, que não as transcrevemos aqui para não cairmos no mesmo erro.
            O tratamento científico por ele dado a certos assuntos era um mero reflexo de sua cega vaidade e intransigente postura em não aceitar contestações. Quando isso ocorria, embasbacava-se, ruborizava-se e apresentava argumentos nada convincentes que só incentivavam a hilaridade contida nas entranhas dos alunos, todos quase a explodir em risos. Mas para maior revolta da classe, a situação piorava quando o mestre vingava-se em avaliações descriteriosas e mal elaboradas que mais serviam para mostrar autoritarismo que para avaliar conhecimento, coisa que pouco tinha, haja vista ser o seu saber o refugo do que teria sido se tivesse estudado.
            De fato era um néscio, um néscio travestido de intelectual, do tipo detentor de um saber duvidoso, demasiadamente intangível até para ele mesmo, pois tinha dificuldade em alcançá-lo para transmiti-lo; um néscio que se valia de uma retórica empolada, talvez arrancada de um desses manuais de categoria inclassificável e também duvidosa que bem poderia se apresentar sob o pomposo título de “Tudo que você precisa saber para falar bem em público e não passar vergonha”.   
Verdadeiramente, atropelava a ortografia, a sintaxe e a semântica (estes três seres monstruosos) com o pragmatismo de um trem desgovernado. Com erros absurdamente esdrúxulos, que passeavam por todas as áreas do conhecimento, e servido de frases latinas enferrujadas, extraídas de outro manual qualquer, que serviam tão somente para aumentar a pompa do indivíduo, ressaltando a ignorância, pois se perguntassem a etimologia do palavreado ele nada sabia dizer com clareza, foi assim consolidando a sua nefasta e arrogante presença perante a classe, sem a mínima inquietação da consciência ética, moral e intelectual, valores que certamente nem cultivasse, já que essas coisas andam mesmo em falta no mercado.
            Por tudo isso e um pouco mais, é que o mestre e a classe travavam discussões hercúleas a respeito de saber e não saber, como ou não ensinar, saber aprender ou não, e o seu, para ele, o mestre, notável conhecimento, aumentado por ele mesmo. Tudo, absolutamente tudo isso fazia que diminuísse a cada dia o pouco o quase mais nenhum respeito que a classe pudesse ainda nutrir por ele. Até que um dia, um aluno mais irreverente espetou com a verdade o orgulho do mestre:
            — O senhor não sabe ensinar! – disse, pondo-se firmemente de pé e com o dedo em riste.
            O professor, com o “intelecto” sangrando embrutecimento, sem que pudesse formular melhor resposta, certamente pela simples carência de algo que a turma tinha certeza que ele não tinha, respondeu do mesmo modo, dedo em riste, desenhando no ar um arco geométrico imaginário, coisa de que nem ele, um dia, tivesse talvez ouvido falar, assim como as regras da boa gramática:
            — Vocês é que não sabe aprender! Ao longo da minha carreira, sempre foi assim. É assim porque é assim, e pronto! – disse, sem a devida concordância gramatical e contextual.
            — Realmente assim não é possível aprender! – declarou outro aluno.
            De insinuações a entreveros mais ásperos, o impasse acabou por culminar numa discussão interminável da classe com o mestre, pois as declarações deste só poderiam ter sido uma piada.
            E o mestre retomou o discurso:
            — Então digam aonde estamos errando?
            — Aonde estamos? Xi! Errou de novo e duplamente! – disparou outro aluno irritado, entre risos dos demais.
De fato, aonde não era apropriado à frase, e estamos incluía a classe no erro, e isso não era verdade, errava apenas o professor, duplamente!
— Não admito gracinhas! – bradou o mestre, ruborizado, sem entender ao certo o motivo do riso, pois do erro explicado acima a classe tinha ciência, já o mestre não, claro!
— Não admito gracinhas! – repetiu.
— Nem nós! – reverberou um coro de alunos.
E deu-se que, no ardor da discussão, um aluno mais irreverente ainda teve a espirituosa ideia de relinchar. Este fato, como se não bastasse para adjetivar a figura do mestre, suscitou a outro membro do corpo discente outra ideia não menos espirituosa, acrescida de certa insolência, exagerada talvez, mas que veio bem a calhar.
De fato a ideia era suficientemente contundente para que o mestre se reconhecesse – pelo menos isso era o que se esperava – como o absurdo da ignorância perpetuada por quase um século na Instituição da qual fazia parte. Naquele dia, porém, não houve como executá-la, dada a situação daquilo que o “mestre do saber”, quase que diariamente, insistia em chamar de aula.
Chegado o momento adequado, no dia seguinte, o aluno da ideia mirífica chegou mais cedo, reuniu a classe e explicou a todos o que tinha preparado para o mestre e disse:
— Então é isso!
— Sério?! – perguntaram-lhe.
— Exatamente! Não se assustem com a situação. O que está lá é realmente o que vocês vão ver! E não precisa ter medo. É manso!
Ansiosos, todos ficaram tomados de curiosidade pelo que iria acontecer.
Quando o professor, na hora costumeira, assomou no corredor que dava acesso à sala de aula, para impor por mais um dia a sua triste e medíocre figura, construída ao longo dos seus trinta anos de carreira, avistou os alunos reunidos do lado de fora da sala.
Mesmo imaginando que teria que enfrentar a insólita turba – pelo menos esse foi o pensamento que lhe atravessou o crânio – não perdeu a compostura (se é que tinha alguma) e rumou para a sala.
Ao se aproximar dos alunos, disparou:
— É motim?! Querem boicotar a minha instrução, é isso?!
— Não, senhor! – respondeu com firmeza o porta-voz do grupo e autor da ideia. – e com ironia, concluiu: — Só lhe trouxemos um aluno à altura da sua notável pedagogia e arrogância.
Ao entrar na sala, o ilustre mestre se deparou com um cavalo... um cavalo tão negro quanto o seu conhecimento.
O animal – refiro-me ao cavalo – estava no meio do recinto, rodeado por cadeira vazias, à espera do instrutor.
À primeira vista, pode ter perecido ao equino que o instrutor era de outro mundo, de outra espécie animal, mas tão logo o mestre começou a falar, os olhinhos do animal começaram a serenar, o bicho meneou a cabeça, talvez procurando identificar-se, e pareceu, no momento seguinte, sentir que aquela figura que falava lhe era bem familiar.
Para o espanto dos alunos, o animal – refiro-me agora ao mestre – dirigiu-se ao cavalo e começou o seu ofício diário.
 — Vamos começar pelo início. – disse, como se começar por outro lado fosse fazer alguma diferença. E continuou, enquanto o cavalo, já bem familiarizado, lhe olhava com um ar de solidariedade e olhinhos brilhantes: — Como você sabe, a natureza é composta por dois grandes reinos: o vegetal, que compreende as plantas; – e apontado para o cavalo e para si – e o animal, do qual você e eu fazemos parte...
Do lado de fora, os alunos não esperaram o resto da explicação. A última frase ouvida da boca do mestre foi usada com a melhor das propriedades linguística em todas as dimensões da linguagem: “...do qual você e eu fazemos parte...”. Olhem só que maravilha!
Comprimiram o riso, e um dos alunos disse:
— É... não tem jeito! É pior do que imaginávamos. São mais de trinta anos de animalismo, de paradigmas unilaterais doentios, de ideias fixas amareladas, enfim, de embrutecimento. Isso é uma doença que vicia!
Algumas horas depois da execução do plano e do último comentário do aluno, houve quem achasse a ideia um tanto exagerada e descabida e quase saísse em defesa do professor, mas não ousou levar adiante o intento, haja vista não querer ser tachado de bajulador de ideias caducas.
Retiraram-se, só restando mais comentários para o dia seguinte. E é neste dia que vamos encontrar os dois alunos em diálogo, um narrando a outro de outra turma o insólito fato:
— Aula para um cavalo?!
            — Isso mesmo: um cavalo!
            — Então é mesmo um cavalo a figura!
            — E o pior é que... – sentenciou, ao ver passar ao lado o único aluno que achou a ideia um tanto descabida - ...o pior é que esse tipo sempre deixa discípulos!





Wallace Rocha

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