quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Namorando com o suicídio



Por J. R. Guzzo

Se nada piorar neste ano de 2013, cerca de 250 policiais serão assassinados no Brasil até o dia 31 de dezembro. É uma história de horror, sem paralelo em nenhum país do mundo civilizado. Mas estes foram os números de 2012, com as variações devidas às diferenças nos critérios de contagem, e não há nenhuma razão para imaginar que as coisas fiquem melhores em 2013 - ao contrário, o fato de que um agente da polícia é morto a cada 35 horas por criminosos, em algum lugar do país, é aceito com indiferença cada vez maior pelas autoridades que comandam os policiais e que têm a obrigação de ficar do seu lado. A tendência, assim, é que essa matança continue sendo considerada a coisa mais natural do mundo - algo que "acontece", como as chuvas de verão e os engarrafamentos de trânsito de todos os dias.
Raramente, hoje em dia, os barões que mandam nos nossos governos, mais as estrelas do mundo intelectual, os meios de comunicação e a sociedade em geral se incomodam em pensar no tamanho desse desastre. Deveriam, todos, estar fazendo justo o contrário, pois o desastre chegou a um extremo incompreensível para qualquer país que não queira ser classificado como selvagem. Na França, para ficar em um exemplo de entendimento rápido, 620 policiais foram assassinados por marginais nos últimos quarenta anos - isso mesmo, quarenta anos, de 1971 a 2012. São cifras em queda livre. Na década de 80, a França registrava, em média, 25 homicídios de agentes da polícia por ano, mais ou menos um padrão para nações desenvolvidas do mesmo porte. Na década de 2000 esse número caiu para seis - apenas seis, nem um a mais, contra os nossos atuais 250. O que mais seria preciso para admitir que estamos vivendo no meio de uma completa aberração?
Há alguma coisa profundamente errada com um país que engole passivamente o assassínio quase diário de seus policiais - e, com isso, diz em voz baixa aos bandidos que podem continuar matando à vontade, pois, no fundo, estão numa briga particular com "a polícia", e ninguém vai se meter no meio. Essa degeneração é o resultado direto da política de covardia a que os governos estaduais brasileiros obedecem há décadas diante da criminalidade. Em nenhum lugar a situação é pior do que em São Paulo, onde se registra a metade dos assassinatos de policiais no Brasil; com 20% da população nacional, tem 50% dos crimes cometidos nessa guerra. É coisa que vem de longe. Desde que Franco Montoro foi eleito governador, em 1982, nas primeiras eleições diretas para os governos estaduais permitidas pelo regime militar, criou-se em São Paulo, e dali se espalhou pelo Brasil, a ideia de que reprimir delitos é uma postura antidemocrática - e que a principal função do estado é combater a violência da polícia, não o crime. De lá para cá, pouca coisa mudou. A consequência está aí: mais de 100 policiais paulistas assassinados em 2012.
O jornalista André Petry, num artigo recente publicado nesta revista, apontou um fato francamente patológico: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, conseguiu o prodígio de não comparecer ao enterro de um único dos cento e tantos agentes da sua polícia assassinados ao longo do ano de 2012. A atitude seria considerada monstruosa em qualquer país sério do mundo. Aqui ninguém sequer percebe o que o homem fez, a começar por ele próprio. Se lesse essas linhas, provavelmente ficaria surpreso: "Não, não fui a enterro nenhum. Qual é o problema?". A oposição ao governador não disse uma palavra sobre sua ausência nos funerais. As dezenas de grupos prontos a se indignar 24 horas por dia contra os delitos da polícia, reais ou imaginários, nada viram de anormal na conduta do governador. A mídia ficou em silêncio. É o aberto descaso pela vida, quando essa vida pertence a um policial. É, também, a capitulação diante de uma insensatez: a de ficar neutro na guerra aberta que os criminosos declararam contra a polícia no Brasil.
Há mais que isso. A moda predominante nos governos estaduais, que vivem apavorados por padres, jornalistas, ONGs, advogados criminais e defensores de minorias, viciados em crack, mendigos, vadios e por aí afora, é perseguir as sua próprias polícias - com corregedorias, ouvidorias, procuradorias e tudo o que ajude a mostrar quanto combatem a "arbitrariedade". Sua última invenção, em São Paulo, foi proibir a polícia de socorrer vítimas em cenas de crime, por desconfiar que faça alguma coisa errada se o ferido for um criminoso; com isso, os policiais paulistas tornam-se os únicos cidadãos brasileiros proibidos de ajudar pessoas que estejam sangrando no meio da rua. É crescente o número de promotores que não veem como sua principal obrigação obter a condenação de criminosos; o que querem é lutar contra a "higienização" das ruas, a "postura repressiva" da polícia e ações que incomodem os "excluídos". Muitos juízes seguem na mesma procissão. Dentro e fora dos governos continua a ser aceita, como verdade científica, a ficção de que a culpa pelo crime é da miséria, e não dos criminosos. Ignora-se o fato de que não existe no Brasil de hoje um único assaltante que roube para matar a fome ou comprar o leite das crianças. Roubam, agridem e matam porque querem um relógio Rolex; não aceitam viver segundo as regras obedecidas por todos os demais cidadãos, a começar pela que manda cada um ganhar seu sustento com o próprio trabalho. Começam no crime aos 12 ou 13 anos de idade, estimulados pela certeza de que podem cometer os atos mais selvagens sem receber nenhuma punição; aos 18 ou 19 anos já estão decididos a continuar assim pelo resto da vida.
Essa tragédia, obviamente, não é um "problema dos estados", fantasia que os governos federais inventaram há mais de 100 anos para o seu próprio conforto - é um problema do Brasil. A presidente Dilma Rousseff acorda todos os dias num país onde há 50 000 homicídios por ano; ao ir para a cama de noite, mais de 140 brasileiros terão sido assassinados ao longo de sua jornada de trabalho. Dilma parece não sentir que isso seja um absurdo. No máximo, faz uma ou outra reunião inútil para discutir "políticas públicas" de segurança, em que só se fala em verbas e todos ficam tentando adivinhar o que a presidente quer ouvir. Não tem paciência para lidar com o assunto; quer voltar logo ao seu computador, no qual se imagina capaz de montar estratégias para desproblematizar as problematizações que merecem a sua atenção. Não se dá conta de que preside um país ocupado, onde a tropa de ocupação são os criminosos.
Muito pouca gente, na verdade, se dá conta. Os militares se preocupam com tanques de guerra, caças e fragatas que não servem para nada; estão à espera da invasão dos tártaros, quando o inimigo real está aqui dentro. Não podem, por lei, fazer nada contra o crime - não conseguem nem mesmo evitar que seus quartéis sejam regularmente roubados por criminosos à procura de armas. A classe média, frequentemente em luta para pagar as contas do mês, se encanta porque também ela, agora, começa a poder circular em carros blindados; noticia-se, para orgulho geral, que essa maravilha estará chegando em breve à classe C. O número de seguranças de terno preto plantados na frente das escolas mais caras, na hora da saída, está a caminho de superar o número de professores. As autoridades, enfim, parecem dizer aos policiais: "Damos verbas a vocês. Damos carros. Damos armas. Damos coletes. Virem-se."
É perturbadora, no Brasil de hoje, a facilidade com que governantes e cidadãos passaram a aceitar o convívio diário com o mal em estado puro. É um "tudo bem" crescente, que aceita cada vez mais como normal o que é positivamente anormal - "tudo bem" que policiais sejam assassinados quase todos os dias, que 90% dos homicídios jamais cheguem a ser julgados, que delinquentes privatizem para seu uso áreas inteiras das grandes cidades. E daí? Estamos tão bem que a última grande ideia do governo, em matéria de segurança, é uma campanha de propaganda que recomenda ao cidadão: "Proteja a sua família. Desarme-se". É uma bela maneira, sem dúvida, de namorar com o suicídio.

Fonte: Revista Veja, edição 2306, 30 de janeiro de 2013

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Cantada na Terceira Idade



Antigamente quando ouvia conversas de pessoas ou sobre pessoas com um pouco mais de idade e de experiência, eu me perguntava se quando eu envelhecesse eu ia ficar assim tão cheio de cerimônias como elas. Afinal, 60 ou 70 anos de idade impunha algum respeito, pelo menos era o que os mais velhos me ensinavam, muito embora eu me recusasse a aceitar que envelhecer fosse isso: ficar chato, ajuizar o vocabulário, ponderar os gestos e ser discretos com os prazeres da vida, incluindo o sexo, é claro, e todas as suas manifestações corporais e linguísticas! Putz!, pensava, se for assim, quero morrer jovem, depois dos 25 e antes dos trinta!
Ainda bem que o tempo, os conceitos e os valores mudam, a sociedade vai se reajustando, e tudo o que antes era, por assim dizer, enxerimento, hoje é moda e divertimento. E eu não estranho quando vejo alguém com um pouco mais idade todo espevitado. Aliás, me divirto. Penso: é assim que quero envelhecer. Isso, sim, é vida.
O que me causa estranhamento é que hoje tenho amigos de 25 a 30 anos que são bem mais puritanos que minha mãe de 70 anos e seu palavreado debochado. Mamãe costuma dizer que os jovens têm muito a aprender com os mais velhos. E parece que este conselho continua muito em voga, a julgar pela história que vivenciei este final de semana, um papo mais do que descontraído entre um senhor de 66 e uma senhora de 61 anos.
Ele: Você bebe?
Ela: Não.
Ele: Você fuma?
Ela: Também não.
Ele: Então você não bebe nem fuma?
Ela: Faço amor. Adoooro!
Ora! Para quem já passou dos sessenta, não dá pra perder tempo com cerimônias. A essa altura da vida, a vida corre mais rápido, com muito mais intensidade.
Quero envelhecer assim!
Envelhecer bem é envelhecer vivo!

Wallace Rocha

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

La Puta de Babilonia




                Sempre gostei de literatura de boa qualidade, principalmente de livros inteligentes e polêmicos, desses que quem escreve é excomungado e quem lê é pervertido ou possuído pelo demônio, livros que atiçam a nossa índole a fazer coisas boas ou ruins – ou pelos menos pensá-las, nas ruins – ou mesmo deixar-nos com alguma experiência nova após a leitura, sentindo que o mundo dentro do nosso crânio se expandiu... enfim, algo bem por aí. Há muito o mundo literário carecia de qualquer coisa desse tipo. E eu, enfastiado de literatura pop e seus açucarados melodramas que vendem mais do que banana em fim de feira para leitor de péssimo gosto, acabei, na minha incansável avidez por leitura, por encontrar La Puta de Babilonia, um ensaio histórico e acadêmico sobre a Igreja Católica escrito por Fernando Vallejo, colombiano naturalizado mexicano. A obra foi apresentada na Faculdade de Filosofia e Letras da Universdad Nacional Autónoma de México e inicialmente foi publicada pela Editora Planeta Mexicana em 2007.
            La Puta de Babilonia (ou, em português, A Prostituta da Babilônia) é o nome que os albigenses davam à Igreja Católica Romana, conforme o livro do Apocalipse. Para os que não são profundos conhecedores do texto bíblico para saber de có onde estão as referências, é só visitar os trechos 17:1 e 17:2, em que está escrito: “Vem, mostrar-te-ei a condenação da grande prostituta que está assentada sobre muitas águas; com a qual se prostituíram os reis da terra; e os que habitam sobre a terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição”; o trecho 17:9, que trataria sobre Roma, fala em “(...) sete montes, sobre os quais a mulher está assentada”; e o trecho 17:18, que  expressa: “E a mulher que viste é a grande cidade que reina sobre os reis da terra”. Já é um bom começo para a diversão! RS!
            A bem da verdade, a obra está situada na área dos estudos sobre a fé dogmática católica contemporânea dos últimos mil e setecentos anos, abordando, nas 317 páginas sem divisão de capítulos da versão original em língua espanhola, a postura da Igreja no derramamento de sangue de vidas humanas e sua relação com o poder temporal. Em La Puta de Babilonia, Vallejo desmistifica e busca mostrar o que está por trás dos pilares dessa instituição que ao longo de toda a obra é denominada La Puta.
            Uma menção ilustrativa do conteúdo de tal livro foi feita por José Saramago em uma entrevista. Saramago, respondendo sobre as polêmicas nas quais estava envolvido quando do lançamento do livro Caim em 2009, e se o lançamento de tal livro iria causar polêmicas na Espanha, disse o seguinte: “Não, em Espanha, não. Publicou-se lá recentemente um livro do Fernando Vallejo, La Puta de Babilonia, que se fosse eu a escrever aquilo cá em Portugal tinham-me dependurado num desses candeeiros da avenida. É de uma violência de denúncia e de crítica que é um autêntico bota abaixo”.
            Apesar de o livro não estar dividido em capítulos, podem ser distinguidos, exemplificativamente, os seguintes temas:
a. Os grandes crimes da Igreja Católica.
b. Os bispos de Roma destruindo cópias antigas dos evangelhos no século III d.C. (pág. 54).
c. Escolha dos vinte e sete textos para o Novo Testamento no Terceiro Concílio de Cartago no ano de 397 (pág. 68).
d. Inexistência de provas da existência histórica de Cristo (pág. 81).
e. Contradições entre os evangelhos; inexatidões (págs. 89; 116).
f. Os evangelhos apócrifos (pág. 116).
g. A interpretação simbólica das "cretinadas bíblicas" (“cretinices bíblicas”) (pág. 157).
h. As operações tenebrosas do Banco do Vaticano (pág. 212).
i. Os papas dos séculos XIX e XX.
j. Como Ratzinger chegou ao papado calculadamente (pág. 292).

            Quem estiver entusiasmado pelo livro, que foi lançado em 2007, mas que ainda não tem tradução para o português, pode baixar uma cópia em espanhol em alguns sites.
            Apenas para atiçar um pouco mais a curiosidade, vão aí alguns juízos do autor: em uma entrevista de divulgação do livro, Vallejo expressou a sua opinião de que Jesus é: “Um plano forjado por Roma, centro do império e do mundo helenizado, a partir do ano 100, reunindo traços tomados dos mitos de Átis da Frígia, Dionísio da Grécia, Buda do Nepal, Krishna da Índia, Osíris e seu filho Horus do Egito, Zoroastro e Mitra da Pérsia e toda uma série de deuses e redentores do gênero humano que o precederam em séculos, e ainda em milênios, e que o mundo mediterrâneo conheceu em razão da conquista da Pérsia e da Índia por Alexandre Magno”. E prossegue: “Atis morreu pela salvação da humanidade, crucificado em uma árvore, desceu ao submundo e ressuscitou no terceiro dia. Mitra teve doze discípulos; pronunciou um Sermão da Montanha, foi chamado de Bom Pastor, se sacrificou pela paz do mundo e ressuscitou aos três dias. Buda ensinou no templo aos 12 anos, curou enfermos, caminhou sobre a água e alimentou quinhentos homens com uma cesta de biscoitos; seus seguidores faziam votos de pobreza e renunciavam ao mundo; foi chamado de Senhor, Mestre, a Luz do Mundo, Deus dos Deuses, Altíssimo… Krishna foi filho de um carpinteiro, seu nascimento foi anunciado por uma estrela no oriente e esperado por pastores que lhe presentearam com especiarias…”
            Independentemente de crença religiosa ou qualquer coisa que o valha, só posso dizer que é leitura que vale a pena. Afinal, cultura e conhecimento nunca são demais.

Referência: Wikipédia, a enciclopédia livre.