segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Vamos brincar de índio?



                Narram as crônicas eleitorais do município do Jordão, interior do Estado do Acre, que certo candidato, escolado na arte da política eleitoreira, portanto ávido por votos, já se via vitorioso nas eleições municipais daquele ano, uma vez que estava acostumado com a ingenuidade da população urbana local. Porém, como estratégia de campanha ainda mais segura, centrou suas atenções nos votos da comunidade rural da região, predominantemente indígena, pois lhe faltava apenas o apoio dessa gente para sacramentar de vez a vitória, já dada como quase certa.
                Resolveu então fazer campanha fluvial, visitar as aldeias indígenas, conversar com os chefes das tribos... tudo isso no mais descarado estilo de pedir votos; e numa dessas visitas, encontrou os Kaxinawá[1] do Rio Jordão reunidos, parou, procurou o cacique da tribo e pediu-lhe para fazer o velho discurso de campanha, com aquela lábia característica que a nós, os brancos, sempre convence.
                Os índios, como nós, embora já habituados com as vigarices do homem branco, são boa gente hospitaleira e, por isso, o receberam com alegria quase festiva, apertos de mãos, abraços e cumprimentos tribais... e com a mesma hipocrisia a eles dispensada pelo candidato, mas com muito mais classe.
                — Povo Kaxinawá, tô aqui hoje pra pedir o apoio Kaxinawá nas eleição. Como vocês sabe... – começou o redundante aspirante o seu insulto à tribo, num português até aceitável para o nível dos candidatos que se apresentam hoje em dia, mas já demonstrando que não conhecia muito bem a etimologia do termo indígena empregado na frase nem o que ele significava para aquele povo, muito menos as regras de concordância do nosso tão massacrado idioma. Por mais ou menos dez minutos, continuou o blábláblá ferino aos indígenas e ao vernáculo e arrematou o pedido erguendo os dois braços com os punhos cerrados: — Posso contar com o voto Kaxinawá pra gente irmos junto à vitória?! – e esboçou feição de cínica dissimulação à espera de resposta positiva.
Os índios, que haviam estado em silêncio até aquele momento, olharam todos para aquilo e, em seguida, para o cacique, que olhou para o seu povo, fez um sinal com a cabeça, e todos os índios, que conheciam o português e as intenções do candidato talvez um pouco melhor que ele próprio, estamparam no rosto um risinho também cínico, mas contido, ergueram também os braços com os punhos cerrados e, em coro, pronunciaram:
                — Huni kuinman![2]
                O candidato não entendeu patavinas! Mas, embora aflito por entendimento, se fez parecer entendido por aquela fingida inteligência que só os ignorantes explícitos conhecem e dela fazem uso muito bem. Em seguida, só para se certificar, olhou para o cacique, que acenou com a cabeça em sinal positivo, e o pretendente aos votos esboçou de volta um risinho amarelo, acanhado de ignorância, e que logo agravou o seu estado de estupidez depois de novo coro risonho dos índios:
                — Huni kuinman! Dayanãwẽ![3]                              
                A esta segunda tão efusiva manifestação, o candidato, ainda meio desconfiado e sem entender bulhufas, mesmo assim, respirou aliviado. Tinha que ser algo bom. O sorriso era agora mais largo e descontraído, quase de agradecimento. Pensou que aquela sua lembrança esporádica e imediata dos índios certamente faria os índios lembrarem-se dele agora.
                O cacique tocou-lhe o ombro em sinal amistoso e, sorrindo, conduziu o candidato, esfuziante de estúpida alegria, até a saída da aldeia. E como prova inconteste de amizade, o cacique, sorrindo, pronunciou as últimas palavras:
                — Huni patapabiakẽ ẽ haibuhairaki.[4]
                Os índios gargalharam. O candidato sorriu de volta em agradecimento definitivo.
                Deixou a aldeia com a sensação de ter feito a melhor de suas barganhas políticas e com o seguinte pensamento: A vitória era certa. Certíssima! Os índios estavam com ele.
                No dia das eleições, a surpresa: vitória do candidato opositor, que nunca se esquecera de visitar aquela e outras aldeias muitas vezes antes, mesmo que não fosse candidato. Estava aí o reconhecimento dos Kaxinawá a um Huni kuin.
                Moral da nossa história? Creio que é hora de nós brincarmos de ÍNDIO!

Wallace Rocha


[1] Autodenominam-se "Huni Kuin" (Homem Verdadeiro). A palavra Kaxinawá significa literalmente "Povo do Morcego" e não é muito bem aceita por alguns indígenas dessa etnia.
[2] Seu falso! (Literalmente: Homem não verdadeiro!)
[3] Seu espertalhão! Vai trabalhar! (Lit.: Homem não verdadeiro! Trabalha!)
[4] Ele é tonto até na esperteza (mas é meu amigo). (Lit.: Homem danado de esperto; é verdadeiro na esperteza. Deve ser entendido por ironia, significando exatamente o contrário, algo bem próximo da nossa expressão “Ô coisa linda!”, significando “feio”, tratamento que só os amigos se permitem)

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