segunda-feira, 12 de março de 2012

Longus amor est, sed vita brevis


            De toda a ficção do norueguês Jostein Gaarder, autor de O Mundo de Sofia e Através do Espelho, certamente é Vita Brevis, este pequeno grande livro, a mais notável de toda a sua já admirável obra literária. O assunto é provavelmente o mais maduro e instigante de todos os temas já tratados em seus livros.
            Vita Brevis trata de um suposto Codex Floriae, que teria sido escrito por Flória Emília a Aurélio Agostinho, o Santo Agostinho, filósofo cristão autor das Confissões.
            Como história de fundo, o autor lança mão de um artifício afirmando que teria descoberto um velho manuscrito em latim que teria sido garimpado em um sebo de Buenos Aires e que o próprio autor comprou e traduziu. Consistiria de uma coleção de cartas da mãe do filho de Santo Agostinho, que se chamaria Flória Emília, e que depois de ter sido abandonada por ele, tem uma educação Clássica, ler suas Confissões (onde ela é mencionada, mas não nomeada) e se sente compelida a escrever esse texto como resposta às Confissões, revelando suas discordâncias e insatisfações por ter sido deixada pelo ascetismo do santo, uma visão de mundo mais voltada para a vida após a morte do que para a vida agora, que é breve, razão do título. Eis aí o livro.
            Na carta, Flória leva-nos a entender que foi a amante de Agostinho, deu a luz a um filho dele e foi abandonada por ele quando ele mergulhou em suas crenças religiosas. A carta entrelaça a história de seu relacionamento e também fornece uma resposta à abordagem de Agostinho ao amor humano. Flória narra que, com o sofrimento causado pelo abandono, aprendeu muito nos anos em que estiveram separados. Ela constroi sua carta como um eco das Confissões, além de enchê-la com alusões a outras literaturas clássicas e também às Escrituras, a que o próprio Agostinho tanto ama e segue. Flória se se contrapõe a Agostinho com o seguinte argumento: para ele, negar seu amor seria rejeitar algo de bom que o próprio Deus criou.
            Flória também destaca a forma como Agostinho foi incapaz de romper seu relacionamento com a mãe – forte influência religiosa na vida dele –, e que, na realidade, a resposta de Agostinho a Flória tem a ver com este efeito de distorção por suas convicções religiosas, pois a mãe de Agostinho o queria livre dos prazeres carnais aos quais ele tinha se entregado.
            Seria muito fácil pensar, especialmente se encararmos essa situação sem preconceitos e com olhos modernos, que Gaarder, ao apresentar esta parábola, está endossando a abordagem ao amor, que diz nada mais do que "se o amor é bom, é certo". No entanto, o argumento é mais sutil do que isso. Flória e Agostinho, apesar de solteiros, viviam efetivamente em um relacionamento de comprometimento um com o outro e já tinham um filho. A resposta mais apropriada para alguém incomodado com isso, de uma perspectiva religiosa, seria para ele ter se casado com Flória. Romper um relacionamento como esse, como a mãe de Agostinho esperava, para formar um considerado mais adequado – formando uma segunda ligação física em seu lugar – não seria um passo em frente, pois a mãe perderia o seu Agostinho para outra mulher de qualquer jeito, caso ele viesse a romper com Flória e posteriormente procurar outra, já que esta era a real motivação e foi a que de fato ocorreu. Isso não é mencionado no livro, porém. E o livro se equivoca justamente aí, ao dar como causa da separação o ascetismo de Santo Agostinho, quando na verdade a separação ocorreu bem antes de sua conversão.
            Como consta no Livro VI das Confissões, a verdadeira razão é um casamento arranjado, que interessava financeira e socialmente a Agostinho. O ascetismo andava longe de Agostinho nesta época, já que arranjara outra concubina, mas por ser a noiva ainda muito jovem, teve que esperar ainda dois anos para efetivar o casamento.
            Talvez por não querer tratar a história de Agostinho e Flória nesses termos, o autor tenha optado por omitir esses fatos e lançar mão de mais outro artifício, destancando então a insistência da mãe em instigar o filho a seguir o caminho da religião.
            Por outro lado, não podemos desconsiderar esse aspecto real da história do santo: Agostinho permitir que a sua vida emocional tenha sido governada por sua mãe também é inadequado.
            Considerando isso tudo, e nos centrando apenas na abordagem filtrada por Gaarder, que escolheu essa linha, é aí que a história se torna mais intricada, pois sai da mera e previsível literatura, permeada de conceitos históricos, religiosos e filosóficos, para tomar ares psicológicos mais complexos.
            Além disso, é também nesse ponto que Flória, ao desconstruir o conceito de amar de Agostinho, é bastante feliz em mostrar que o que ele estava fazendo não representa uma interpretação sensata das Escrituras, que ele usava como base para nortear sua vida e também usou para justificar o seu abandono a Flória.
            Na realidade, a abordagem de Agostinho, a sua negação do prazer físico, das relações humanas, tem mais a ver com uma abordagem dualista, que separa o físico do reino espiritual. Isto, naturalmente, não é uma ideia cristã. Para os cristãos, Deus governa tanto o físico quanto o espiritual. Não queremos dizer aqui que as expressões físicas de amor tem sempre razão, pois não é isso o que o Cristianismo prega. O que queremos dizer é que negar qualquer expressão física do amor, como Flória argumenta que Agostinho fez, é definitivamente errado.
            Aliás, a história de Gaarder se encaixa quase que perfeitamente no enredo da tragédia básica dada por Christopher Booker no seu Seven Basic Plots, com Agostinho sendo a pessoa que não consegue chegar à completude e à compreensão.
            "Apesar de ter sido editado em 1996, ainda hoje, devido aos recursos literários, utilizados pelo autor, muitos leitores acreditam ser este livro uma história real, e não uma obra de ficção. Vários meios feministas e anticatólicos fazem referência ao livro como forma de criticar Santo Agostinho e a Igreja Católica. Até hoje não se sabe o nome da mãe do filho de Santo Agostinho." Ele próprio não dedica mais que duas linhas sobre o seu amor nas Confissões.
            De todo modo, é impressionante como um livro tão pequeno nos faz descobrir coisas tão grandes. Assim é Vita Brevis: “uma joia literária”, uma ficção interessante que mescla literatura, história, filosofia, religião e psicologia digna de Freud num texto sensual e sedutor que nos faz repensar valores cristãos já amarelados com o tempo e deles tirar novas conclusões! Independentemente de ser ficção (ou realidade – como alguns acreditam ser), “ajuda-nos a entender um pouco mais a história de um dos grandes santos da Igreja Católica”... E por que não dizer a história de nós mesmos?!
            Leitura que vale a pena! Pra ler de uma vez só!


                Wallace Rocha


Referência bibliográfica:
GAARDER, Jostein. Vita Brevis. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Nenhum comentário: