sexta-feira, 8 de julho de 2011

Kafka, Giudice e nós: diálogo entre pescoço e guilhotina


Acompanhar, no decurso desta semana, as tensas e, por assim dizer, quase belicosas negociações salariais entre a equipe de governo do nosso Estado e os sindicalistas representantes dos mais diversos segmentos do funcionalismo público estadual me levou a revisitar O Arquivo, um dos mais conhecidos contos de Victor Giudice. E revisitar Giudice também me fez lembrar a absurda e sombria realidade retratada com acuidade por Franz Kafka em suas produções literárias e da forma como isso se materializa no insólito da nossa realidade cotidiana, situações sobre as quais passarei a discorrer com brevidade a partir de agora, para posteriormente retornar a O Arquivo e às relações que o conto guarda com a situação das negociações inicialmente apresentadas.
Em A Metamorfose, de Kafka, por exemplo, Gregor Samsa, a personagem principal, ao acordar, depois de uma noite de “sonhos intranquilos”[1], vê-se transformado num estranho ser, similar, pela descrição do autor, a uma barata! Apesar de absurda, a situação tem seu significado alegórico, pois não se trata de um pesadelo ou alucinação, e sim de um fato, social e/ou psicológico, mas brutalmente real, de maneira que Samsa, outrora cidadão respeitado e sustentáculo da família, por causa de uma doença que o leva à decrepitude, deixa de ser gente e passa a ser um “inseto monstruoso”[2], passando daí a ser visto como tal pela sua própria gente.
Em O Processo, outra alegoria, entendida por alguns antropólogos como de cunho religioso, o Sr. Joseph K., em outra extraordinária situação Kafkiana, é acusado de um crime que não cometeu e não sabe qual é, mas que, conforme sugere Frota Pinto, “a cada tentativa de defesa, sente-se cada vez mais culpado, terminando por ser condenado, a despeito de ignorar qual foi o seu crime. “(...) um horrível pesadelo, interminável, esquisito, estranho e agressivo, mas real, apesar de fantasmagórico.” [3]
Em O Castelo, mais uma vez Kafka relata outra história absurda: a de um profissional contratado para realizar serviços num Castelo, ao qual nunca consegue alcançar por causa de inúmeros empecilhos que impedem a realização do seu trabalho. “Singular e estranhamente, porém, dias depois recebe do dono do Castelo uma absurda carta na qual, depois de muitos elogios, agradece o trabalho que nunca conseguiu realizar.”[4] Nesta história existe uma situação dialética contraditória, em que Kafka mostra que “na vida nem sempre somos reconhecidos pelo que fazemos, enquanto somos elogiados pelo que deixamos de fazer, ou seja, deixamos de ser tomados pelo bem que fazemos e, em troca, somos agraciados pelo mal que deixamos de praticar”.[5]
Na novela Diante da Lei, perifraseando mais uma vez Frota Pinto, Kafka nos surpreende com mais uma situação dialética contraditória, em que uma pessoa, desejando informar-se sobre a Lei, dirige-se ao pórtico do Tribunal de Justiça e é impedido de entrar por um guarda, que lhe explica ser ele, o guarda, o menor de uma série de obstáculos para o seu acesso à Lei. E ele, então, se detém nessa situação durante anos e anos, sempre impedindo de ter acesso à Lei, apesar de inúmeras tentativas feitas, até que, já velho, e sentindo-se prestes a morrer, indaga do guardião a razão dessa situação absurda, até porque todos esses anos jamais viram alguém transpor a porta do Tribunal, ao que o guarda responde: “Realmente, ninguém pode entrar por essa porta, uma vez que ela é só para você. Isto é, só você podia penetrar nela.”
Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com o conto O Arquivo e quais as relações que o conto guarda com a nossa atual conjuntura? Sejamos simples e vamos direto ao ponto:
Ao ler o referido conto, em que a personagem joão (assim mesmo, com inicial minúscula), após sucessivos rebaixamentos de postos e de salário na empresa onde trabalhou por vários anos, já próximo à aposentadoria, acaba desumanizado, transformando-se num arquivo de metal, estamos diante de mais um paradoxo Kafkiano que, por vezes, ocorre na vida de uma pessoa que, apesar de ter garantidos os direitos constitucionais básicos, como saúde, educação, trabalho, salário digno, respeito, proteção da lei, livre manifestação de idéias e pensamentos etc, na prática isso nem sempre acontece, já que vivemos em um país em que quase tudo, incluindo a liberdade e a vida, depende de flexibilidade política e econômica. 
Aliás, muito bem trabalhada em O Arquivo, nas palavras de Tereza Freire “a expressão flexibilização trabalhista é o eufemismo consagrado pelos cardeais do neoliberalismo para promover diálogo entre pescoço e a guilhotina. Victor Giudice, com uma clareza implacável e uma sutil ironia vai nos mostrar o caminho de desventuras que coisificam o trabalhador regido pelas leis de mercado e por um patronato de uma cobiça voraz. O Arquivo é uma situação limite, infelizmente vivida por milhões de brasileiros excluídos ou incluídos formal ou informalmente no mercado de trabalho.”[6]
O fato é que as visões de mundo de Kafka e de Giudice são esclarecedoras e nos advertem que não devemos nos portar nem como opressor nem como oprimido, nem como o chefe nem como o joão, pois são duas figuras, de muitas tantas espelhadas aí pelo mundo, que se complementam, uma vez que uma não existiria sem a outra, sendo ambas por isso igualmente cúmplices e responsáveis por sua condição humana – ou desumana –, cabendo unicamente a nós aceitarmos ou não tais condições.
Verdadeiramente, as obras de Kafka e de Giudice são pontos atualíssimos e convergentes de todas as situações que tornam complexo o viver em nosso meio social, “onde as organizações e as estruturas, em vez de atuarem em prol da pessoa humana”[7] (refiro-me ao joão), zelando por sua dignidade e respeito, “contra ela se colocam”,[8] como forma de matar no outro o que odeiam em si mas não têm coragem de aceitar, ou de modo a neutralizar no outro aquilo que gostariam de ser mas nunca chegarão a alcançar (falo agora do chefe).


Wallace Rocha


 

[1] Na tradução de Modesto Carone.
[2] Idem.
[3] Gerardo da Frota Pinto. É médico psiquiatra, titular da Academia Cearense de Medicina e professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Escreveu um artigo em que analisa com detalhes as obras de Kafka e suas relações psiquiátricas.
[4] Idem.
[5] Ibidem.
[6] Tereza Freire é historiadora, com mestrado sobre Pagu pela PUC-SP. É roteirista e diretora do documentário Caminhos do Yoga, gravado na Índia em 2003, e autora do romance Selvagem como o vento, de 2002. Na televisão, cabe destacar seu trabalho como roteirista da série de documentários da STV, Diário de Viagem, sobre turismo no Nordeste, e como apresentadora do programa Contos da Meia-noite, da TV Cultura de São Paulo. Foi contemplada com o Programa de Ação Cultural (PAC) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 2006.
[7] Frota Pinto.
[8] Idem.

4 comentários:

Danielle disse...

Post oportuno e inteligente! Como sempre. Gostei das comparações e mais: da situação autal que se faz presente no nosso Estado hoje. Qualquer semelhança não é mera coincidência!

Wallace Rocha disse...

Só posso dizer obrigado, Dani. Valeu!

Michael disse...

Realmente tenho que concordar com as idéias apontadas no texto, com seu profundo conhecimento em dizer que continuamos na mesma, embora já se tenha passado muito tempo sobre tais obras e a mesma retórica, mas a mesmice continuada por governante é quem detém o poder, o que nos deixa ‘’conformados’’ com tais situações, parece que quanto mais se fala em reivindicações salariais nada se muda, onde sindicalistas com novas propostas, governo com contraproposta e a nossa opinião em boa parte por ambas são deixada de lado ou não meçam realmente o que é “ideal” para nós, acho que esse circulo nada vai mudar, devemos agir realmente como Joseph Climbe ou brasileiros que somos, não desistimos nunca. Rsrsr... abrçss.

Wallace Rocha disse...

É, Michael. Mas a vida continua... em silêncio... KKKKK!