terça-feira, 16 de julho de 2013

Dicionário da Amazônia



                Constam nas crônicas do Acre que, tempos atrás, havia certos folclores por parte dos habitantes que se deslocavam da capital Rio Branco para viver na fronteira do Estado com a Bolívia (Brasiléia com Cobija). Dizem que, ao habituarem-se à localidade, alguns moradores brasileiros, que não dominavam nem a própria língua, inexplicavelmente adquiriam até o sotaque espanhol dos hermanos.
            Ocorreu então que, certo dia, nomeou-se, como se nomeava antigamente, um daqueles delegados sem muita formação, mas com muita experiência, para responder pela delegacia de nossa cidade fronteiriça e pôr fim de vez à criminalidade. O homem era daqueles que, como dizia minha mãe, tinha fardo de estupidez que nunca havia mexido, tão grosso era o cabra. Mas estava lá o homem: delegado da fronteira, coisa monumental para lugar tão mirrado.
            Alguns dias depois de sua chegada, o delegado se deparou com a sua primeira ocorrência policial. Aportou à entrada da delegacia um jovem, noticiando, numa mistura de português sofrível com um espanhol ingrato, o seguinte gracejo:
            Mi capitan, venho a hablar a usted que me roubaram mi chalana de la porto!
            De fato, o relato, como posto, era bem típico de gente medíocre que, quando se comunicava com gente que viesse de fora, gostava logo de fingir uma importância que não tinha, é claro.
            O delegado, que prezava muito bem pelo português amazônico e não era afeto a macaquices, desconfiado de que o rapaz era brasileiro com molecagem, chamou o seu auxiliar, disparando a seguinte sentença:
            — Tenório, venha cá e traga o Dicionário da Amazônia!
            O auxiliar apareceu com um porrete de borracha do tamanho da ignorância linguística do rapaz. E o delegado, em seguida, disse ao auxiliar:
            — Dê três porretadas no cabra pra ele lembrar como se fala.
            Tenório executou a ordem com precisão e estampou no rosto um prazer horripilante.
            — Pelo amor de Dios, mi capitan, só vim hablar a usted que me roubaram mi chalana de la porto!
            — Tenório! Mais três! – ordenou o delegado.
            De pronto, a ordem novamente foi cumprida com o mesmo prazer.
            — Seu delegado, pelo amor de Deus, só vim falar pro senhor que roubaram minha catraia lá do porto. – disse o rapaz, já bem alinhado com o falar brasileiro.
            Para confirmar a suspeita de que o porrete não mentia, o delegado concluiu:
            — Tenório! Dê mais três pra ele não esquecer o Dicionário da Amazônia.
            E Tenório executou a sua receita infalível.
            Daquele dia em diante, dizem que, por longo tempo, não houve mais crime na fronteira... tampouco molecagem linguística.
           
            Wallace Rocha



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