Constam nas crônicas do Acre que,
tempos atrás, havia certos folclores por parte dos habitantes que se deslocavam
da capital Rio Branco para viver na fronteira do Estado com a Bolívia (Brasiléia
com Cobija). Dizem que, ao habituarem-se à localidade, alguns moradores
brasileiros, que não dominavam nem a própria língua, inexplicavelmente adquiriam
até o sotaque espanhol dos hermanos.
Ocorreu então
que, certo dia, nomeou-se, como se nomeava antigamente, um daqueles delegados sem
muita formação, mas com muita experiência, para responder pela delegacia de
nossa cidade fronteiriça e pôr fim de vez à criminalidade. O homem era daqueles
que, como dizia minha mãe, tinha fardo de estupidez que nunca havia mexido, tão
grosso era o cabra. Mas estava lá o homem: delegado da fronteira, coisa
monumental para lugar tão mirrado.
Alguns dias
depois de sua chegada, o delegado se deparou com a sua primeira ocorrência
policial. Aportou à entrada da delegacia um jovem, noticiando, numa mistura de
português sofrível com um espanhol ingrato, o seguinte gracejo:
— Mi capitan, venho a hablar a usted que me roubaram mi
chalana de la porto!
De fato, o
relato, como posto, era bem típico de gente medíocre que, quando se comunicava
com gente que viesse de fora, gostava logo de fingir uma importância que não
tinha, é claro.
O delegado, que
prezava muito bem pelo português amazônico e não era afeto a macaquices, desconfiado
de que o rapaz era brasileiro com molecagem, chamou o seu auxiliar, disparando
a seguinte sentença:
— Tenório, venha cá e traga o Dicionário da
Amazônia!
O auxiliar apareceu com um porrete
de borracha do tamanho da ignorância linguística do rapaz. E o delegado, em
seguida, disse ao auxiliar:
— Dê três porretadas no cabra pra
ele lembrar como se fala.
Tenório executou a ordem com
precisão e estampou no rosto um prazer horripilante.
— Pelo amor de Dios, mi capitan, só
vim hablar a usted que
me roubaram mi chalana de la porto!
— Tenório! Mais três! – ordenou o delegado.
De pronto, a ordem novamente foi
cumprida com o mesmo prazer.
— Seu delegado, pelo amor de Deus,
só vim falar pro senhor que roubaram minha catraia lá do porto. – disse o
rapaz, já bem alinhado com o falar brasileiro.
Para confirmar a suspeita de que o porrete
não mentia, o delegado concluiu:
— Tenório! Dê mais três pra ele não
esquecer o Dicionário da Amazônia.
E Tenório executou a sua receita
infalível.
Daquele dia em diante, dizem que,
por longo tempo, não houve mais crime na fronteira... tampouco molecagem
linguística.
Wallace
Rocha
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