quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Salve, Ave!

Se desconsiderarmos os idiomas bárbaros existentes à época nos territórios sob o domínio de Roma, poderíamos dizer que o Grande Império Romano, dentro do qual Jesus nasceu, era apenas bilíngue. Na parte ocidental se falava o latim; na oriental, o grego.
Os religiosos, numa decisão sábia, adotaram como idioma eclesiástico o latim, já que era falado pela maioria da população do Império Romano, dentro do qual o cristianismo nasceu e se multiplicou.
No século IV, foi feita a tradução latina da Bíblia por São Jerônimo, o qual corrigiu o Novo Testamento sobre os manuscritos gregos e traduziu, em grande parte, diretamente do hebraico, o Antigo Testamento. Essa tradução, chamada de Vulgata, foi declarada a versão oficial da Igreja Católica, reconhecida como autêntica pelo Concílio de Trento (sec. XVI).
Não precisamos dizer que da Vulgata saíram também as versões das orações que hoje conhecemos, dentre elas a oração da Ave Maria, cuja tradução da primeira frase ou verso, focada especificamente na palavra “Ave”, é a razão desta nota.
E por falar em tradução, quero fazer um parêntese, e explico por quê: considerando que a aceitação de uma obra depende em grande parte da tradução (pelo menos eu tenho essa idéia e uso esse critério na hora de comprar um livro traduzido – posso estar errado!), e é da tradução que dependem também as possíveis interpretações que da obra advém, devo admitir que entendo o ofício da tradução não somente como ciência ou profissão, mas muito mais que isso, como uma arte.
Pois bem: sabemos que “Ave” é uma saudação de boas-vindas ou reverência. E sabemos também que “Ave” pode ser traduzido como “Salve”, “Saudações” ou simplesmente “Olá”, “Oi”. “Ave” então, como qualquer outra palavra com diversos significados, pode ser uma faca de dois gumes. São essas as possibilidades que um bom tradutor deve perceber. Dependo do contexto, esse ou aquele termo será mais adequado a essa ou àquela tradução. E é aí que entra a arte!
Assim, Ave, Caesar! significa Salve, César! E para o contexto e a época, não haveria hoje melhor palavra do que “Salve” para a tradução de “Ave” na expressão em tela. Do mesmo modo pensamos se tomarmos a primeira frase ou verso da oração da Ave Maria, no original latino "AVE MARIA, GRATIA PLENA..." e sua tradução para o português “Ave Maria, cheia de graça...”. Porém temos uma ressalva: por que não se traduziu o “Ave” no português, já que em outros idiomas isso ocorreu, ou pelo menos se tentou fazer, adequando o termo ao vernáculo?
Vejamos alguns exemplos:
Lutero, em sua Bíblia, traduziu para o alemão da seguinte forma: “Gegrüßet seist du, Maria, voll der Gnade…”, o que gerou, na nossa humilde avaliação, certa redundância. De qualquer modo, manteve-se a mensagem e a seriedade da oração.
Henrique VIII, em sua versão para o inglês, registrou da seguinte maneira: “Hail Mary, full of grace...”, cuja tradução do “Ave” vem a assemelhar-se bastante com a escolhida para traduzir o “Ave” em “Ave, Caesar”.
Nos idiomas neolatinos mais falados, porém, houve quem fizesse e quem não fizesse a tradução ou adequação do termo “Ave”.
No francês, optou-se pela versão “Je vous salue, Marie, pleine de grâce...”, que, embora mais despojada, ficou bem posta, sem mais considerações.
No espanhol, foi concedido a Maria ares de majestade com o texto “Dios te salve, María, llena eres de gracia...”. Na nossa opinião, a melhor das traduções.
Veio então o português, “Última flor do Lácio, inculta e bela”, traduzindo o texto da seguinte maneira: “Ave Maria, cheia de graça...”, e é aí que retomamos a indagação: por que não se traduziu o “Ave”?.
Ora! Creio que agora arremato o texto e chego aonde quero, lançando, pois, a minha jocosa e parca tese:
            Defendo que ainda bem que o tradutor optou por manter o “Ave”. Foi uma escolha bem acertada, melhor do que traduzir sem o devido zelo ou arte, podendo até mesmo descambar num desastre! Pois na mão de um tradutor menos hábil ou “cheio de graça”, como este que vos escreve, a tradução poderia não ter ficado tão respeitosa como a alemã ou a inglesa, ou tão bem trabalhada como a francesa ou a espanhola. Vai que este tradutor cheio de graça escolhesse, dentre todas as possibilidades de tradução da palavra “Ave”, simplesmente o “Oi”! Teríamos o seguinte texto, embora seja desnecessário mencionar: “Oi, Maria, cheia de graça...”.
Acrescentando ainda a essa versão uma pitada de travessura, um tom de voz sedutor, e pronunciada a frase de modo maroto, cheio de gracejos, certamente teria sido criado o maior dos desrespeitos eclesiásticos, transformando o sagrado em profano, pois soaria como insinuante gesto de galanteio ou inusitada impressão de safadeza, com o perdão da santa! Ave, Maria!
Portanto... Salve, Ave!


Wallace Rocha


2 comentários:

Jokebed disse...

Gostei do texto. :)

Bollace, lleno de gracia.

Wallace Rocha disse...

É a minha cara! RS!