segunda-feira, 25 de julho de 2011

Um caso de prênclise!


            Visitando o Parque de Exposições no último domingo, como fez a maioria dos rio-branquenses (ainda é assim que se escreve?), certamente por falta de opção de lazer ou algo melhor pra fazer, percebi que esta edição da feira não trouxe grandes novidades, não que eu esperasse por isso. O interessante disso é que, mesmo sabendo da mesmice, a gente ainda vai!
            Mas como sou otimista e sempre tiro algum proveito das situações, ao visitar o setor de mostra de veículos recordei um episódio ocorrido numa edição anterior da Expoacre e que me foi narrado por meu amigo Edvan, ilustre cruzeirense, por ocasião de sua passagem também pelo mesmo setor de mostra de veículos. O episódio dizia respeito a uma possível modificação na sintaxe da nossa língua. Como agora virou moda bagunçar a língua portuguesa, lembrei-me do caso e, a partir de agora, vou me permitir alguns exageros. Se o Lula pode, por que eu não posso? Antes de irmos ao fato, contudo, gostaria de fazer algumas considerações.
É certo que me incomoda, ainda, como algumas pessoas maltratam a nossa língua, seja por desconhecerem o uso adequado do vernáculo ou simplesmente por usarem-no com excesso de zelo. Inquieta-me também o fato de outros conhecerem tanto o nosso idioma que, de tão rebuscados, não conseguem dar explicações acessíveis a nós, pobres mortais, e caímos naquela de Entender ou venerar, como bem escreveu Dinah Silveira de Queiróz. E há ainda os acordos ortográficos, o último deles recentemente implantado no Brasil e que, em minha opinião, só veio pra me atrapalhar, eu que já estava quase aprendendo o nosso massacrado vernáculo cotidiano.
            Por esses motivos e outros que não valem a pena ser citados, atravessou minha mente uma idéia (assim mesmo, com acento, pelo menos até 2012) com ressonâncias linguísticas que só revalida a tese de que a língua é um organismo vivo, dinâmico e independente da vontade humana, o que me leva a crer que as modificações deveriam acontecer naturalmente com a variação dos costumes e da cultura no decorrer do tempo, não por acordo ou decreto. Claro! Devo admitir que posso estar errado ou que pelo menos há alguém que discorde mim, mas uma coisa é certa: existem casos de alterações linguísticas naturais que podem ter vindo para ficar e que nem foram contemplados pelo famigerado acordo, a exemplo do episódio presenciado e narrado por meu amigo Edvan.
O caso é o seguinte:
                 
      A respeito de um jipe simuladamente atolado no setor de mostra de automóveis, dois cidadãos travavam o seguinte diálogo:
      — O jipe se atolou-se. – disse o primeiro deles.
      — Não é se atolou-se. – replicou o segundo.
      — Como não?! – treplicou o primeiro.
      E o replicante explicou majestosamente, sem dizer muita coisa:
      — Ou se usa próclise ou ênclise.
      E o outro, em sua explicação nada ortodoxa, mas de certo modo irreverente e espirituosa, sem desmerecer o catedrático conhecimento do amigo, contra-argumentou o rigor sintático do colega de modo bem mais prático:
      — Veja bem, companheiro. Eu sei exatamente o que eu disse. Se o jipe tivesse atolado apenas as rodas dianteiras, seria se atolou; se tivesse atolado somente as rodas traseiras, seria atolou-se. Como estão atoladas tanto as dianteiras como as traseiras, o certo é mesmo se atolou-se. E pronto!
      E ambos gargalharam.

Sem dúvida, esta foi a melhor explicação sobre próclise e ênclise simultaneamente que eu já tive. Ademais, como sugeriu o Edvan, criou-se a partir daí uma nova terminologia que, futuramente, se permitirem os gramáticos e o “saudoso” Lula, poderia chamar-se prênclise.
Ah! Nem precisaria de acordo ortográfico ou decreto! Nem do Lula! RS!
Valeu, Edvan! Essa é pra você aí em Sampa.


Wallace Rocha

quinta-feira, 14 de julho de 2011

“O Paraizo dos Lanbe-sal”


             A vida é infinitamente mais estranha do que qualquer coisa que a mente do homem possa inventar. Sequer ousaríamos conceber fatos que ocorrem normalmente no dia-a-dia. Se pudéssemos sair voando pela janela e planar sobre a cidade, gentilmente removendo os telhados, poderíamos espiar as coisas bizarras que acontecem, as estranhas coincidências, os destinos que se cruzam, a maravilhosa cadeia de eventos que atravessa geração e leva aos resultados mais excêntricos, que tornam sem sentido e desinteressante toda a ficção, com seus convencionalismos e conclusões previsíveis. Estas palavras estão contidas na abertura do conto Um caso de Identidade, de Sir Arthur Conan Doyle, que foi um famoso escritor e médico britânico, reconhecido no seu tempo e ainda hoje por suas histórias sobre o detetive Sherlock Holmes, aliás grande inovação, para a época, no campo da literatura criminal/policial.
            Tomando por base a citação de Conan Doyle, me pergunto quantas histórias interessantes não daria a vida de uma pessoa, dessas que vivem aí pelo mundo, numa realidade às vezes até bem próxima de nós, mas que sequer são notadas, porque são quase invisíveis.
            Considerando que Doyle, além de histórias policiais e de mistério, também escreveu ficção científica, novelas históricas, peças, poesias e obras de não-ficção, se vivesse ainda hoje e se propusesse a escrever sobre essa gente, o caso de um singular senhor, conhecido por Zé do Chifre, daria uma história no mínimo pitoresca, não por seu caráter criminal/policial, mas pela obviedade que sugere o apelido do respeitado senhor Zé.
            Como já não há mais Conan Doyle e a ele talvez não interessasse escrever sobre tal assunto, também nada atraente a este blogueiro (RS!), nós, que somos contemporâneos do referido senhor e por dever histórico, nos daremos o trabalho de render-lhe uma singela homenagem e eternizá-lo, em tom de comédia, mas com todo o respeito que o caso merece, nas crônicas do bairro Jorge Lavocart, a pedido do próprio Zé do Chifre que, ao saber de uma ferramenta de comunicação com o mundo (nosso blog) que poderia levá-lo a ser conhecido e famoso nas “Zoropa”, fez questão de nos contar algumas de suas hilárias historietas e nos cedeu inclusive imagens suas e de um dos alegóricos atributos de sua alcunha, um chapéu de couro com dois chifres pontiagudos que usava no momento da entrevista.

Zé do Chifre mora no seu Paraizo dos Lanbe-sal”, letreiro estampado no portão de sua humilde residência e que é também sua metáfora para o recanto de um Corno com letra maiúscula, como ele próprio descreve. Na parede do casebre há um capacete com dois chifres, além da Oração do Corno, escrita pelo próprio senhor Zé, num português nada ortodoxo, mas perfeitamente compreensível.

Homem de estatura atarraxada, com gingado característico de quem adora fazer pilhéria, Seu Zé exibe um brinco de argola na orelha esquerda e algumas tatuagens mal rabiscadas no seu corpo já enrugado pelo tempo. Na face carrega um par de óculos bem comuns e no lábio superior ostenta um bigode cheio, largo e esbranquiçado.
Apesar da saúde fragilizada decorrente de doenças características de sua idade (faz uso de medicamento para hipertensão e outras mazelas), mora sozinho e quase não tem com quem compartilhar o dia, a não ser com alguns visitantes que há muito lhe conhecem e lhe visitam esporadicamente e com os pássaros que o presenteiam com a sua presença e o encantam com seu cantarolar matinal. Ele alimenta os animais todos os dias com arroz. Gasta alguns quilos por mês. É seu passatempo predileto.
Apesar de sua vida modesta, não reclama de nada. Bem se vê pelo seu sorriso, sempre estampado no rosto, que seu humor é contagiante.
Tem sempre uma boa história na ponta da língua, entre elas algumas lições de como tratar bem uma mulher para não levar chifre, mas que ele só aprendeu depois de treze... explico:
Sem cerimônias, Seu Zé se autodenomina, orgulhosamente, a tomar pela largura do seu sorriso, o Corno mais corno do Acre. Pois já foi casado com 13 mulheres e foi corno por 13 vezes. E propôs um desafio assustador, digno de pesadelo: “Quem for mais corno do que eu que se apresente aqui e me prove!” Alguém aí se habilita?!
Seu bigode cheio, largo e esbranquiçado carrega também alguma história, pois nele, em contraste com o branco, ressalta-se certa amarelidão nas extremidades que, segundo Seu Zé, teria sido provocada pelo calor das virilhas femininas com as quais ele teve contato, após os seus 75 anos bem vividos, quando adotou outra estratégia na abordagem sexual logo depois de sua queda de virilidade, esse mal irremediável que um dia atacará a nós todos (que pra mim demore bastante. RS!). Tal amarelidão, estampada nos pelos do seu bigode, é hoje a lembrança de suas mais recentes estripulias eróticas.
Na experiência dos seus 75 anos de idade, Seu Zé do Chifre nos deixou uma lição: disse que de política não fala, pois não gosta de imoralidade! Quer apenas terminar seus dias na paz do Senhor.
Quase ao final de nossa conversa, nos tocou com outro relato que nada mais é do que um misto de romantismo triste, irônico e até cômico: Seu Zé traz gravado no peito, como se para reforçar a memória de seu coração, as inicias de um nome que não nos revelou, mas afirmou ser da única mulher que amou e não soube valorizar e que por isso não esquece.
Que Seu Zé possa encontrar no resto de vida que lhe resta o conforto por ele almejado e certamente merecido. Que seja do tamanho do seu bom-humor e alegria contagiantes.
Para arrematar o texto e a história, finalizamos com mais uma pérola deixada por Zé do Chifre: “Os Cornos, mais do que ninguém, também amam!”


Wallace Rocha


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Kafka, Giudice e nós: diálogo entre pescoço e guilhotina


Acompanhar, no decurso desta semana, as tensas e, por assim dizer, quase belicosas negociações salariais entre a equipe de governo do nosso Estado e os sindicalistas representantes dos mais diversos segmentos do funcionalismo público estadual me levou a revisitar O Arquivo, um dos mais conhecidos contos de Victor Giudice. E revisitar Giudice também me fez lembrar a absurda e sombria realidade retratada com acuidade por Franz Kafka em suas produções literárias e da forma como isso se materializa no insólito da nossa realidade cotidiana, situações sobre as quais passarei a discorrer com brevidade a partir de agora, para posteriormente retornar a O Arquivo e às relações que o conto guarda com a situação das negociações inicialmente apresentadas.
Em A Metamorfose, de Kafka, por exemplo, Gregor Samsa, a personagem principal, ao acordar, depois de uma noite de “sonhos intranquilos”[1], vê-se transformado num estranho ser, similar, pela descrição do autor, a uma barata! Apesar de absurda, a situação tem seu significado alegórico, pois não se trata de um pesadelo ou alucinação, e sim de um fato, social e/ou psicológico, mas brutalmente real, de maneira que Samsa, outrora cidadão respeitado e sustentáculo da família, por causa de uma doença que o leva à decrepitude, deixa de ser gente e passa a ser um “inseto monstruoso”[2], passando daí a ser visto como tal pela sua própria gente.
Em O Processo, outra alegoria, entendida por alguns antropólogos como de cunho religioso, o Sr. Joseph K., em outra extraordinária situação Kafkiana, é acusado de um crime que não cometeu e não sabe qual é, mas que, conforme sugere Frota Pinto, “a cada tentativa de defesa, sente-se cada vez mais culpado, terminando por ser condenado, a despeito de ignorar qual foi o seu crime. “(...) um horrível pesadelo, interminável, esquisito, estranho e agressivo, mas real, apesar de fantasmagórico.” [3]
Em O Castelo, mais uma vez Kafka relata outra história absurda: a de um profissional contratado para realizar serviços num Castelo, ao qual nunca consegue alcançar por causa de inúmeros empecilhos que impedem a realização do seu trabalho. “Singular e estranhamente, porém, dias depois recebe do dono do Castelo uma absurda carta na qual, depois de muitos elogios, agradece o trabalho que nunca conseguiu realizar.”[4] Nesta história existe uma situação dialética contraditória, em que Kafka mostra que “na vida nem sempre somos reconhecidos pelo que fazemos, enquanto somos elogiados pelo que deixamos de fazer, ou seja, deixamos de ser tomados pelo bem que fazemos e, em troca, somos agraciados pelo mal que deixamos de praticar”.[5]
Na novela Diante da Lei, perifraseando mais uma vez Frota Pinto, Kafka nos surpreende com mais uma situação dialética contraditória, em que uma pessoa, desejando informar-se sobre a Lei, dirige-se ao pórtico do Tribunal de Justiça e é impedido de entrar por um guarda, que lhe explica ser ele, o guarda, o menor de uma série de obstáculos para o seu acesso à Lei. E ele, então, se detém nessa situação durante anos e anos, sempre impedindo de ter acesso à Lei, apesar de inúmeras tentativas feitas, até que, já velho, e sentindo-se prestes a morrer, indaga do guardião a razão dessa situação absurda, até porque todos esses anos jamais viram alguém transpor a porta do Tribunal, ao que o guarda responde: “Realmente, ninguém pode entrar por essa porta, uma vez que ela é só para você. Isto é, só você podia penetrar nela.”
Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com o conto O Arquivo e quais as relações que o conto guarda com a nossa atual conjuntura? Sejamos simples e vamos direto ao ponto:
Ao ler o referido conto, em que a personagem joão (assim mesmo, com inicial minúscula), após sucessivos rebaixamentos de postos e de salário na empresa onde trabalhou por vários anos, já próximo à aposentadoria, acaba desumanizado, transformando-se num arquivo de metal, estamos diante de mais um paradoxo Kafkiano que, por vezes, ocorre na vida de uma pessoa que, apesar de ter garantidos os direitos constitucionais básicos, como saúde, educação, trabalho, salário digno, respeito, proteção da lei, livre manifestação de idéias e pensamentos etc, na prática isso nem sempre acontece, já que vivemos em um país em que quase tudo, incluindo a liberdade e a vida, depende de flexibilidade política e econômica. 
Aliás, muito bem trabalhada em O Arquivo, nas palavras de Tereza Freire “a expressão flexibilização trabalhista é o eufemismo consagrado pelos cardeais do neoliberalismo para promover diálogo entre pescoço e a guilhotina. Victor Giudice, com uma clareza implacável e uma sutil ironia vai nos mostrar o caminho de desventuras que coisificam o trabalhador regido pelas leis de mercado e por um patronato de uma cobiça voraz. O Arquivo é uma situação limite, infelizmente vivida por milhões de brasileiros excluídos ou incluídos formal ou informalmente no mercado de trabalho.”[6]
O fato é que as visões de mundo de Kafka e de Giudice são esclarecedoras e nos advertem que não devemos nos portar nem como opressor nem como oprimido, nem como o chefe nem como o joão, pois são duas figuras, de muitas tantas espelhadas aí pelo mundo, que se complementam, uma vez que uma não existiria sem a outra, sendo ambas por isso igualmente cúmplices e responsáveis por sua condição humana – ou desumana –, cabendo unicamente a nós aceitarmos ou não tais condições.
Verdadeiramente, as obras de Kafka e de Giudice são pontos atualíssimos e convergentes de todas as situações que tornam complexo o viver em nosso meio social, “onde as organizações e as estruturas, em vez de atuarem em prol da pessoa humana”[7] (refiro-me ao joão), zelando por sua dignidade e respeito, “contra ela se colocam”,[8] como forma de matar no outro o que odeiam em si mas não têm coragem de aceitar, ou de modo a neutralizar no outro aquilo que gostariam de ser mas nunca chegarão a alcançar (falo agora do chefe).


Wallace Rocha


 

[1] Na tradução de Modesto Carone.
[2] Idem.
[3] Gerardo da Frota Pinto. É médico psiquiatra, titular da Academia Cearense de Medicina e professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Escreveu um artigo em que analisa com detalhes as obras de Kafka e suas relações psiquiátricas.
[4] Idem.
[5] Ibidem.
[6] Tereza Freire é historiadora, com mestrado sobre Pagu pela PUC-SP. É roteirista e diretora do documentário Caminhos do Yoga, gravado na Índia em 2003, e autora do romance Selvagem como o vento, de 2002. Na televisão, cabe destacar seu trabalho como roteirista da série de documentários da STV, Diário de Viagem, sobre turismo no Nordeste, e como apresentadora do programa Contos da Meia-noite, da TV Cultura de São Paulo. Foi contemplada com o Programa de Ação Cultural (PAC) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 2006.
[7] Frota Pinto.
[8] Idem.