O Ano de 1993 é
talvez a obra literária mais fabular de José Saramago. Nela o leitor encontrará
um Saramago quase no início de carreira, de estilo sintético, misturando prosa
com poesia propositadamente, mas já o escritor brilhante que viria a encantar
as gerações futuras com a sua prosa sem precedentes.
A habilidade de Saramago permitiu a
ele trabalhar uma escrita crua, rigorosa, com uma imaginação à qual não se
impõe limites, com extraordinária liberdade de sintaxe e pontuação,
características essas inovadoras e que fazem da obra uma composição singular.
A pequena narrativa poética está
ambientada em um mundo que, se não é o nosso, certamente é bem próximo ao
nosso, mundo esse ocupado por lobos ferozes e dominado por forças obscuras
invasoras que vagam em hordas pelos desertos nos quais se converteram as
cidades completamente destruídas.
Neste cenário insólito, enquanto alguns
homens que resistiram à destruição parecem retornar ao começo do mundo, onde
tudo é desconstruído para se reaprender os mais básicos conceitos, como dominar
o fogo, por exemplo, e redescobrir os conceitos do amor, outros homens, mais
fortes ou mais espertos – não se sabe por que motivos – subjugam os fracos, amedrontando-os
com seus grotescos animais biônicos que são desenvolvidos para fins de perseguição
e opressão política.
Vale salientar que em 1974, ano
anterior à escrita do livro, ocorreu a “Revolução dos Cravos,” que foi o
movimento responsável por derrubar a ditadura Salazar inspirada no fascismo, na qual estava mergulhado Portugal
desde 1926. Dizem alguns críticos que tal fato pode ter inspirado Saramago a
imaginar o que viria a acontecer após o conhecido dia “D”.
Embora a narrativa se passe no ano de
1993, que na época da escrita do livro (1975) remetia a um futuro, ela repassa
as eras da nossa história e ainda hoje permanece bem atual, ensejando ainda um
futuro possível, isso se considerarmos o fim com que a obra foi escrita e as
recentes e desastrosas aventuras dos governos populistas da América Latina,
razão pela qual não podemos deixar de nos preocupar com os rumos da política
brasileira, por seus desmandos, pelos escândalos de corrupção, pela destruição
das instituições públicas em favor dos grupos dominantes e em detrimento da
coletividade e pelo quase endeusamento dos dirigentes conquistado à custa de
perniciosas ações de paternalismo estatal, com sortilégios e agrados
politiqueiros, para simplesmente manter sob controle a gente moribunda e
acomodada. De fato, uma verdadeira anulação do ser humano.
Mas longe de ser um livro messiânico,
O Ano de 1993 é o retrato fiel de
nossas atuais instituições públicas que, em sua maioria estão eivadas de vícios
políticos e cujos líderes ditadores se travestem de cordeiros, juntamente com
seus asseclas, para melhor atraírem a sua presa. Se não possuem os tais animais
biônicos, tem os seus subservientes capachos que, embora não sejam biônicos,
são também animais de meia-vida; são do mesmo modo perseguidores, tais quais os
grotescos animais, porém são apenas mais refinados. Se não perseguem ou
exterminam os fracos fisicamente, perseguem-nos moralmente, mexem com a sua
estima, procuram anular o ser humano no seu íntimo, na sua vontade de viver
como ser ativo na sociedade, transformando-o num parasita dependente de um
líder que o irá amparar e guiar num estado de faz-de-conta. Se não conseguem
fazer isso com os indivíduos que ainda pensam, usam de subterfúgios para
desacreditar o agora inimigo e declarar guerra a ele, fazendo o possível para
neutralizá-lo. Por esses motivos, esses capachos acabam sendo muito mais
nocivos à sociedade, por serem humanos.
Então, qual a mensagem que este
pequeno livro nos deixa?
Aceitar esta condição é permitir-se
permanecer submisso, sem horizonte, sem aspirações, sem futuro. É permanecer,
seja por medo ou dependência, à sombra eterna do teu algoz.
Mas qual seria a alternativa?
Simples: não aceitar. Revolucionar! Transpor tal situação para garantir
melhores condições de vida.
E por falar nisso, já passa da hora
de novas revoluções! Quem sabe, assim, teremos, a exemplo de Portugal, nosso
Dia da Liberdade... Liberdade desses governos populistas que só alienam e escravizam
as massas desorientadas.
Mas, infelizmente, iniciar uma
revolução é para poucos. E em se tratando de Brasil, as revoluções já nascem corrompidas,
tudo por causa dos nossos costumes – ou maus costumes – morais. Pois tornar-se-á
o fraco a fortaleza, tornar-se-á o clemente o algoz e tornar-se-á o perseguido
o perseguidor. E assim se repetirão os mesmos erros de outrora, até o final, se
é que, neste círculo vicioso, haverá um final!
Não é fatalismo. É uma constatação. Creio
que estamos fadados ao fracasso!
Vejam a seguir um trecho desse libelo
perturbador:
(...)
19
Quando os habitantes da cidade se tinham
já habituado ao domínio do ocupante
Determinou o ordenador que todos fossem
numerados na testa como no braço se fizera anos antes em Auschwitz e outros lugares
A operação era indolor e por isso mesmo
não houve qualquer resistência nem sequer protestos
O próprio vocabulário sofrera
transformações e haviam sido esquecidas as palavras que exprimiam a indignação
e a cólera
Deste modo os habitantes da cidade se
acharam numerados de 1 a 57229 porque a cidade era pequena e fora escolhida
para experimentação entre todas as cidades ocupadas
Dois meses depois o ordenador registrava
valores de comportamento e diferentes estados de espírito consoante o número
que havia cabido a cada habitante
Entre 1 e 1000 estava o perfeito
contentamento de si próprio ainda assim dividido em mil exactas pequenas
parcelas
Ninguém reconhecia autoridade a quem
tivesse número superior ao seu o que explicava que o 57229 comesse com os cães
e tivesse de masturbar-se porque nenhuma mulher queria dormir com ele
Os habitantes de 1 a 9 consideravam-se
chefes da cidade e vestiam segundo as modas do ocupante
Mas o primeiro deles mandou fazer um aro
de ouro que suspendia sobre a testa como sinal de poder e autoridade e hoje
basta esta sinal para que todas as cabeças se curvem a partir de 2
Porém só o ordenador sabe que estes
números são provisórios e que dentro de vinte e quatro horas todos se apagarão
para reaparecerem por ordem inversa
Processo tão bom como os animais
mecânicos para prosseguir o extermínio da população ocupada
Pois todas as humilhações serão
retribuídas cem por um até a morte
Enquanto os ocupantes se distraem nos
espetáculos que para o seu uso ainda funcionam
(SARAMAGO José. O ano de 1993. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.)
Wallace Rocha