domingo, 19 de maio de 2013

Ética da Hipocrisia - crônica de um veneno crônico



A Barata diz que tem sete saias de filó
É mentira da barata, ela tem é uma só
Ah rá rá, oh ró ró, ela tem é uma só!
(...)
A Barata diz que tem um anel de formatura
É mentira da barata, ela tem é casca dura
Ah rá rá , hu ru ru, ela tem é casca dura
(...)
(Cantiga Popular)


Após certa celeuma acerca de escândalos de irregularidades e ingerências políticas envolvendo membros do alto escalão do governo da Vila dos Bobos, o repórter indagou do assessor de comunicação, em entrevista coletiva, que justificativas ele trazia sobre os fatos veiculados na mídia.
O assessor, cansado de adotar o glamour do estilo true lies, respondeu secamente, num rompante de indignação:
— Quer a verdade ou quer que eu minta?
O repórter foi lacônico:
— A verdade!
— Essa, infelizmente, eu não posso falar, nem na televisão nem na rádio! – respondeu o assessor, com a angústia estampada na testa. — Vão me acusar de ferir a ética institucional.

Assim é trabalhada a ética na administração de algumas de nossas instituições públicas, se é que isso pode se chamar de ética!
Ora! Se “a ética é a parte da Filosofia que estuda os valores morais e os princípios ideais da conduta humana”[1]; se também “é o conjunto de princípios morais que se devem observar no exercício de uma profissão”[2], não é nada ético tê-la que aplicar a serviço da mentira, pois na mentira não existe ética. Se oficiosa, por prazer ou utilidade, a mentira continua sendo prejudicial, aética. Se inocente, a mentira pode ser igualmente desairosa, inconveniente, podendo levar a desvios comportamentais, a hábitos funestos. De qualquer modo, “mentir é um desserviço à formação ética”[3].
“Mentira é a afirmação contrária à verdade, é engano propositado, é também engano da alma, engano dos sentidos, falsa persuasão, juízo falso, erro, ilusão, vaidade”[4]. A ética, ao contrário, não se traveste de valores amorais, mas de virtudes, valores sólidos como a verdade e a justiça, por exemplo.
“Aristóteles dizia que as virtudes morais não são plantadas em nós pela natureza, mas são produto do hábito”[5]. Considerando isso, como há indivíduos influenciáveis, mal habituados! É exatamente este tipo que vende a honra e a dignidade por míseros centavos, cargos, status! E se for preciso, exercem a mentira como se verdade fosse e ainda invocam a ética para justificá-la.
Mas por que isso acontece? Sejamos simples: quem desvirtua a verdade que lhe seria destruidora, caso fosse revelada, não aceita a sua realidade e é incapaz de superar suas limitações. Isso é fato. Portanto, nem precisamos ir mais longe a explicações que não seriam nada éticas.
De fato, “honra, probidade, dignidade e vergonha na cara são valores há muito aposentados pelo advento do relativismo moral”[6], pois alguns valores são relativos a cada grupo de indivíduo, e desse grupo brotarão as conveniências a serem reveladas ou escondidas. Entendemos também que, “se estes valores são desprovidos de discernimento, a ética servirá somente para balizar uma visão limitada da realidade, como por exemplo, a ética dos mafiosos ou dos grupos criminosos”[7], ou mesmo dos grupos políticos que estão no poder, que, para se sustentarem, investem maciçamente em propaganda e na compra de indivíduos para mentir em nome do Estado. Os que conseguem e vivem bem com isso despojam-se da ética, da moralidade e da dignidade para manter o emprego. Como bem disse Rachel Sheherazade, repórter do SBT, “Manda quem pode, obedece quem tem o rabo preso com o governo.” Fica assim o assunto bem resumido.
A verdade é que enquanto o trabalho sério enobrece, a política malfeita envilece o homem. Se fosse esta proposição algo que pudesse ser demonstrado por meio de um processo matemático, lógico, diríamos que estamos frente a frente com um teorema incontestável. Atualmente, porém, e isso é lamentável, o que vale é a ética da mentira ou, como é o caso, na maioria das vezes, a ética de agradar os “padrinhos” e se manter no cargo.
Mas não pense o leitor que esses indivíduos que se predispõem a isso o fazem por mera necessidade financeira. Não é só isso. É bem pior! É falta de caráter mesmo. Na verdade eles também pertencem, como disse Dostoiévski (Crime e Castigo), “a essa inúmera e variada legião de indivíduos medíocres, de fracassados vulgares que não aprenderam nada a fundo, que aderem de um momento para o outro às ideias que estão na moda [ou à política que impera na situação], para logo em seguida degradarem e desacreditarem e, num abrir e fechar de olhos, ridicularizarem tudo o quanto anteriormente apoiaram, ainda que fosse da maneira mais sincera.”
Para isso, vale propagandear, florear as palavras, maquiar inaugurações, engendrar números, mas tudo com bastante objetividade e com a melhor das intenções, diga-se de passagem, intenções pessoais. Isso me faz lembrar o bom modelo de Darrell Huff, no livro Como mentir em estatísticas (1954), onde há exemplos vários de que “números podem ser usados para distorcer a realidade em vez de ajudar a compreendê-la”. “Tal arte não é nova, mas continua sendo a principal forma de transformar a mentira em verdade”[8]; que o diga Goebbels, que “soube tirar proveito da força da propaganda a fim de justificar os crimes de Hitler”[9], martelando a mentira aos quatro cantos, sob a égide nefasta de que “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Mas quando essa verdade não se sustenta mais, de nada adianta, como de fato não adiantou, pois uma hora a casa cai (com o perdão da expressão chula), e cai em qualquer lugar, seja na Alemanha Nazista, na situação econômica dos Estados Unidos, no caos econômico e político da comunidade europeia ou na Vila dos Bobos... Ops! Vejam só! Eis aí a nossa vila em status de paridade com grandes nações! Que maravilha!
O certo, entretanto, é que a força da verdade, sem esforço ou pretensão alguma, é mais destruidora, basta ser dita e provada uma vez. Estão aí as verdades científicas de Einstein que, quando emigrou para os EUA, foi editado na Alemanha um livro intitulado “Cem cientistas contra Einstein”. Resposta do gênio: “Por que cem? Se estou errado, bastava um!”
Infelizmente, porém, a ética da mentira está em alta. Esconde-se a podridão, e borrifa-se o melhor dos perfumes para a plebe, que aplaude a realeza almiscarada como se deuses fossem. Mas um dia, essa realeza, de tanto usar os melhores aromas, esgotará todos os perfumes do mundo, revelando então o seu verdadeiro odor! E a plebe, o que fará?
Nos dias atuais, do modo que é posta, a ética não passa de um exercício de imoralidade em algumas de nossas instituições, algumas delas instituições fulanizadas e que apresentam índice de promiscuidade acurada! Além disso, alguns dirigentes têm estampado na testa o malcaratismo, a mediocridade e a inércia endêmica, tudo reforçado pela subserviência política.
Ademais, longe de constituir o retrato da verdade, propagandas nefastas têm ganhado popularidade nas mais diversas classes sociais do cenário vilabobense e, diga-se de passagem, algumas dessas classes são bem mais suscetíveis a isso, contando, desafortunadamente, com simpatizantes até mesmo entre alguns amigos nossos, cidadãos vilabobenses desorientados.
E para completar o absurdo do conjunto, o mercantilismo funcional através da política que atualmente impera nessa vila é o que ajuda a desgraçar a convivência no meio social, já que a política compra, vende, aluga e descarta, ao seu bel prazer, os indivíduos suscetíveis a esta mercantilice no barato jogo de poder!
E era justamente sobre tudo isso que se falava, outro dia, entre amigos, numa praça da vila, e acabou-se por se comparar essa briga por cargos políticos com a briga de cães por um osso descarnado em Memórias Póstumas de Brás Cubas. O diálogo era o seguinte:
— Sabe a cena dos cachorros brigando por um osso?
— Sim, sei. Você está dizendo que nós somos os cachorros?
— Não. É pior: somos o osso!
Vista a cena desta forma, isso mostra a que ponto chegou a degeneração dos valores morais vividos pela sociedade, transformando a todos em meras coisificações humanas, reduzindo-os a quase nada, a um osso descarnado.
A esse tipo de indivíduo vai aí um recado: “O homem que se vende recebe sempre mais do que vale”.
Mas toda esta história de fingir verdade, parecer ser mais inteligente e ludibriar o público, vender-se à política para não perder os cargos e outras práticas tanto mais vis, tudo isso faz lembrar uma fábula interessante, As Roupas Novas do Imperador, que, em resumo, é mais ou menos assim, para quem ainda não conhece:

Certo dia chegou à corte dois velhacos que, se fazendo passar por tecelões, espalharam o engodo de que o tecido que fabricavam era tão fino, raro e delicado que apenas as pessoas mais inteligentes e mais cultas eram capazes de vê-lo.
Ora! Não tardou que a notícia chegasse aos ouvidos do Imperador, e logo o Rei mandou convidá-los à corte.
Lançada a proposta pelos falsos tecelões e apresentadas as qualidades do fino tecido, o Rei, muito vaidoso, pediu a eles que lhe confeccionassem uma roupa com tal tecido, achando o monarca que o traje lhe seria útil, pois se tivesse uma vestimenta com aquele tecido, poderia, em dois tempos, saber quais dos seus ministros eram demasiado estúpidos e inadequados para desempenhar as suas funções.
Para começar o trabalho os tecelões receberam vários baús cheios de riquezas, como linhas de ouro, seda e outros materiais raros e exóticos, tudo exigido pelos artificiosos para a confecção das roupas.
Em seguida, guardaram todos os tesouros e ficaram em seu tear, fingindo tecer fios invisíveis, que todas as pessoas alegavam ver, para não parecerem parvas. Logo se imagina que muita gente fez papel ridículo para não passar por estúpido, principalmente o Imperador! Ele estava ansioso por ver o andamento do trabalho, mas, apesar de saber que era o homem mais esperto das redondezas, ficou um pouco preocupado com o fato de talvez não conseguir ver o tecido.
Mandou chamar o Primeiro-ministro e ordenou que ele fosse se inteirar do andamento do trabalho dos tecelões.
O Primeiro-ministro também não conseguia ver nada, mas receou que o Imperador o dispensasse se demonstrasse ser um daqueles infelizes demasiado estúpidos para apreciar o tecido. À Vossa Alteza voltou o ministro com a notícia de que era absolutamente perfeito e afirmou com honestidade que nunca tinha visto nada igual.
Impaciente e duvidoso, não tardou que o Imperador enviasse seu chanceler para inspecionar novamente o trabalho, só que o pobre homem não conseguia ver coisa alguma, mas disse que o traje era de beleza incomparável. A verdade, porém, era que também não queria perder o seu emprego.
Por fim, o Imperador não mais se conteve, reuniu os seus ministros e foram ver o progresso dos supostos alfaiates.
Os tecelões, ao ouvirem o barulho das roupas do Rei a arrastar pelo corredor, fingiram estar atarefados nos seus teares. As suas mãos andavam frenéticas, para a frente e para trás, como se trabalhassem com afinco na mais bela e fina das vestes. Mas de fato seguravam absolutamente nada!
O Imperador estancou. Parecia um pesadelo! Só ele, de toda a sua corte, era demasiado estúpido para não conseguir ver o maravilhoso tecido? Sentia a garganta seca e a voz até tremeu quando afirmou com convicção fingida: "Que lindas vestes! Vocês fizeram um trabalho magnífico!". Embora não visse nada, não ousou dizer que nada via, pois isso seria admitir na frente dos súditos que não tinha a capacidade necessária para ser Rei. Assim, o Imperador não perdeu a pose. Os nobres ao redor soltaram falsos suspiros de admiração pelo trabalho, nenhum deles querendo que achassem que eram incompetentes ou incapazes.
Os velhacos garantiram que as roupas logo estariam completas, e o Rei resolveu marcar uma grande parada na cidade para que ele exibisse as vestes especiais. Naturalmente, era de esperar que o Imperador fosse usar as roupas feitas com aquele novo tecido, de que já todo o império ouvira falar.
Na manhã do grande dia, o Imperador estava de ceroulas enquanto os tecelões o ajudavam a vestir a roupa nova. Concordou com tudo o que lhe disseram acerca do corte e das características do tecido. Depois de andar umas quantas vezes para a frente e para trás, de modo a, segundo os tecelões, poder ver como a cauda do manto lhe assentava bem, quase se convenceu que conseguia mesmo ver o traje e que estava efetivamente muito bem feito.
E foi assim que o Imperador saiu à rua, todo orgulhoso, a comandar o regimento real, vestido apenas com as suas melhores ceroulas.
Começou por reinar um silêncio de espanto por entre a multidão que enchia as ruas, mas como já todos tinham ouvido falar de que apenas as pessoas inteligentes conseguiam ver aquelas roupas, primeiro um, depois outro dos súbditos exclamaram, à medida que o Imperador ia passando: “Maravilhoso! Soberbo!” Dali a pouco, já toda a gente aplaudia e dava vivas. O Imperador não cabia em si de contente.
Contudo, quando toda a gente está a fazer muito barulho, acontece por vezes haver de repente breves momentos de silêncio. Um desses momentos deu-se quando o Imperador chegou à praça principal da cidade. No meio desse silêncio, a voz de uma criança fez-se ouvir claramente em toda a praça.
— Mas, mãe! – gritou o menino. — O Imperador está nu!
Naquele momento, a multidão caiu em si, vendo que o menino dissera a verdade e que tinham sido tão palermas quanto o Imperador. Uma após outra, as pessoas começaram a rir. Durante alguns segundos, o Imperador ainda tentou manter a pose digna da sua posição, mas depois lançou o seu manto imaginário para trás do ombro e, assim, continuou mais impassível que nunca, e os camaristas continuaram segurando a sua cauda invisível.

Sempre atual, esta fábula sobre a hipocrisia é bastante ilustrativa ao momento em que vivem os cidadãos vilabobenses.
Preferem a verdade dos outros porque têm preguiça de pensar e construir as próprias verdades.
Preferem andar nus, como o Imperador da fábula, a ter que admitir que são ignorantes.
Preferem viver como baratas a ter que admitir a verdade.
Queira Deus que uma criança “malcriada” não estrague tudo isso!
 




Wallace Rocha





           


[2] Idem.
[5] João Luiz Mauad (Administrador de empresas), em artigo A Ética da Mentira.
[6] Idem.
[7] Eros Salerno, em artigo Em Foco: A Ética Institucional.
[8] Raimundo Salles (Advogado e Diretor Comunicação de SBC) em artigo A Ética da Mentira.
[9] Idem.