sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A (DES)VALORIZAÇÃO DO PROFISSIONAL ACREANO



              O velho discurso de que aprender outra língua abre portas no mercado profissional nunca esteve tão em voga. Então, muitas pessoas passam horas de suas vidas dedicando-se a esse estudo e se surpreendem não só com a descoberta de uma língua nova, mas também de outro mundo que, na maioria das vezes, é completamente diferente do nosso, com outros costumes, modos de ver as coisas, expressões, comida e idéias. E mesmo um melhor conhecimento da nossa língua materna nos é trazido ao estudar a língua de outro povo.
“Aprender uma língua estrangeira é abrir mão da nossa própria língua”. Disse uma vez um aluno meu de francês, professor de filosofia na nossa Universidade Federal. O que é a mais pura verdade. Devemos nos desapegar da nossa idéia lingüística de mundo para entender a do outro.
Bem, de todos os cursos oferecidos, seja numa escola de línguas, seja na internet, seja na universidade, formam-se pessoas com várias habilidades em Letras. Mas, poucos são os que poderiam seguir a profissão de tradutor ou intérprete. O tradutor faz a tradução escrita de um idioma estrangeiro para o português ou a versão, que é levar um texto do português para um idioma estrangeiro; ou a versão de idiomas estrangeiros entre si, no caso dos poliglotas. O intérprete é aquele que traduz o que se é falado numa conversa, numa conferência, reunião etc. Para tanto, é necessário conhecer bem um idioma e suas nuances, um trabalho difícil e cansativo, que exige atenção e cuidado, já que naquele momento se está trabalhando no campo da diplomacia. Uma tradução malfeita ou algo dito de maneira errada pode comprometer o trabalho que se está desenvolvendo. Assim como um trabalho bem feito rende muitos benefícios como aquisição de novas tecnologias, conhecimento e inclusive de milhões em dinheiro.
Porém, tenho observado a desvalorização de quem se propõe a fazer esse trabalho. Diria até a total desvalorização na maioria dos casos. Empresas e órgãos públicos em geral não aceitam pagar o preço que é devido para quem é tradutor/intérprete, ou por desconhecimento do que ele seja ou porque não valorizam o profissional local. Num último pedido de orçamento para tal trabalho, a proposta do intérprete simplesmente foi ignorada, não havendo sequer uma resposta em agradecimento à disponibilidade do profissional; em outro caso, nas entrelinhas estava dito que queriam que a tradutora fizesse o trabalho de revisão de um texto de graça. E há, por vezes, o velho discurso da falta de orçamento. O que muito me espanta ainda é que instituições tão renomadas e que recebem orientações de lugares mais desenvolvidos nesse quesito (tradução/interpretação) não tenham recursos para pagar alguém nesse sentido.
Aqui em Rio Branco, lugar onde efetivamente não há concorrência como nos grandes centros, se cobra um preço bem abaixo daquilo que agências de tradução pagam, por exemplo, por apenas seis horas de trabalho por dia, dada a exaustão a que é levado o intérprete numa situação dessas. Mesmo assim negam-se a valorizar esse profissional. Não consideram que ser tradutor ou intérprete é uma habilidade de poucos, é algo vocacional. Nem todos que trabalham com língua estrangeira querem ou sabem exercer essa atividade onde a atenção e habilidade com outro e com seu idioma é essencial. Não consideram os anos e as horas que passamos debruçados sobre os livros e o dinheiro que se gastou para adquirir aquele conhecimento. Simplesmente, desvalorizam esse profissional e basta. Preferem contratar outros sem experiência ou formação alguma pelo fato de pagarem menos. O que lhes garante, sem sobra de dúvida, um trabalho malfeito.
E, infelizmente, isso não se aplica só ao profissional da tradução/interpretação, mas a muitos outros também. Há muitos por aí cujo currículo não é valorizado como deveria, mesmo fazendo trabalhos delicados como o que se faz com língua estrangeira. Parece que aqui no Acre o velho discurso de que saber uma língua estrangeira abre portas no mercado profissional não se aplica ao próprio profissional de língua estrangeira.


Texto: Elenckey Spielberg
Tradutor/Intérprete, Professor de idiomas, Escritor.


domingo, 11 de setembro de 2011

Consciência não é pra todo mundo



Um Homem de Consciência


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.
            Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.
            Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o deperecimento visível de sua Itaoca.
            – Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons – agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...
            João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.
            – É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.
            Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...
            Ser delegado numa cidadinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca! ...
            João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou num cavalo magro e partiu.
            – Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
            – Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
            – Mas, como? Agora que você está delegado?
            – Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.
            E sumiu.

(Monteiro Lobato. Cidades Mortas. São Paulo, Brasiliense)


            Relendo a obra de Monteiro Lobato, o conto Um Homem de Consciência me chamou a atenção. Ao ler o pequeno texto, não pude deixar de me lembrar de expressões como “liberdade de expressão consciente”, “liberdade de ação consciente”, “responsabilidade profissional”, “responsabilidade social” e, principalmente, “consciência social” ou de qualquer coisa mais que o valha nesta linha de pensamento. E eu, aqui, reconhecendo as minhas limitações e “regalando-me da inteligência alheia”, reservo-me, ainda assim, o direito de tecer alguns comentários, positivamente válidos, creio eu, sobre o texto:
            Ao idealizar e fazer a tessitura do texto, ambientado em Itaoca, uma cidadezinha qualquer que simboliza o estado de São Paulo, Lobato, num bom exemplo de humor e ironia, teve a intenção de explicitar, principalmente, a decadência do Vale do Paraíba e toda a sua miséria e corrupção política. Porém a consciência de um João (com todo o respeito) acabou por alcançar dimensões universais e constituiu um modelo singular de responsabilidade, bom-senso e sabedoria que a maioria dos seres humanos nem sequer conseguem conceber. Mesmo frente a todas as adversidades e necessidades, como muitas vezes acontece conosco, João mostra-se João, ele não se nega, não se vende, muito embora tenha que atingir certas suscetibilidades.
            A mensagem que nos é deixada trata de idéias que, embora acreditando, negamos defender, falta-nos coragem; de posturas que, embora latentes em nós, temos vergonha de assumir, quando fazemos coisas piores e até nos orgulhamos. Numa sociedade que há muito, vergonhosamente, subverteu o conceito de moral e ainda vomita discursos velados acerca de “um processo de restauração da ética”, a mensagem de Lobato, por sua personagem, parece-nos sem importância; mas, para alguns, é degradante: “uma porretada no crânio”.
            João Teodoro, um simples e desimportante João, nos toca tão sutilmente que, aos mais desavisados, soa cômico, quando deveria despertar em nossa consciência um tom de orgulho: como é bom saber que existem pessoas sãs e honestas! Pena que seja apenas um mero e fictício João que, embora encontrando ecos em algumas almas, dificilmente será ouvido, que dirá entendido, exatamente por causa da depreciação de valores morais que já nos parecem tão distantes e soam deslocados na nossa tão nobre sociedade. Como disse Schopenhauer, Die Welt ist krank! E parece-me que alguns seres humanos estão mais doentes ainda. E o mais incrível: não sabem disso – ou fingem não saber!
            O nosso João poderia ter qualquer defeito, embora não fosse nada, não quisesse nada, não tivesse nada. Mas uma coisa é certa: autenticamente João sabia ser: era sensato, honesto, leal, responsável, humilde. Um exemplo de consciência inigualável a ser seguido. Um sábio, portanto. É o tipo de homem que, ao chegar em casa à noite e acomodar a cabeça no travesseiro, tem um sono tranqüilo e reparador.
            Revestir-se de atitudes semelhantes às de João, ingênuas, idealistas, sem egoísmos, é o que nos vai fazer que sejamos distintos, mais evoluídos, mais elevados. Como ele, João, sejamos nós. Sejamos unidos pela consciência única da responsabilidade e da boa índole, não pela prática de interesses egoístas, escusos, execráveis, que de maneira geral são tolos, torpes e ridículos. A vida e todas as suas relações com o seio social não são feitas disso! Tenhamos consciência do que somos, do que sabemos, do que fazemos, do que podemos e, sobretudo, do que poderemos vir a nos tornar. Pois quando alcançarmos o nível de consciência de João Teodoro, certamente seremos pessoas mais justas e dignas de respeito; enfim, pessoas melhores, e melhores também serão nossas instituições públicas. 
              
                                                                                                 Wallace Rocha

sábado, 3 de setembro de 2011

Versões e interpretações modernas para o velho latim



              Não é a primeira vez que visito o ofício da tradução e interpretação, esta fascinante arte que há muito tempo me encanta. Sei que não tenho nela muito talento, mas arrisco, sempre que possível, algumas pinceladas pitorescas, deixando ao curioso leitor as minhas contribuições.
Desta feita, todavia, apresentarei modernas versões e interpretações, umas minhas, outras emprestadas do acaso cotidiano, centradas exclusivamente no velho latim, que insistem alguns em dizer que está morto, porém temos o direito de discordar e contra-argumentar. Morto está quem não lê, pois o latim está bem vivo, e a prova disto é esta língua que vos escrevo e também outras que conheço pouco, como o romeno, o italiano, o francês, o espanhol e o galego, todas elas belas como a nossa língua portuguesa e que não passam de transformação do clássico idioma em modernidade.   
            Para começar a brincadeira, poderíamos sugerir como tradução moderna para Ecce Homo!, palavreado com ressonâncias bíblicas e filosóficas, algo do tipo: É o Cara! Que me perdoem as escrituras... e o filósofo alemão, que a esta hora deve estar se retorcendo no túmulo. O mesmo não podemos dizer de Cristo, que ressuscitou. De todo modo, ambos, Jesus e Nietzsche, eram mesmo Os Caras!, cada qual no seu negócio!
            Continuando, que tal traduzirmos Index Librorum Prohibitorum como Só depois de casar? Acho que não ficou tão ruim não! Afinal, os religiosos viam tantos absurdos no Index quantos vêem as mães puritanas quando advertem suas filhas a respeito do ato da cópula! Portanto creio que a tradução se encaixa bem, é quase o mesmo, apenas exagero.
Bis dat qui cito dat (Dá duas vezes quem dá depressa) pode muito bem ser colocado da seguinte forma, em palavras de Bruna Surfistinha: O próximo!
            Saindo dos títulos clássicos (o que?! vai pensando que Bruna Surfistinha já não virou clássico!), passamos agora a discorrer sobre o mais conhecido acrônimo universal. Falo de I.N.R.I., que ganhou uma interpretação moderna impagável em um trecho do livro Tão Acre, de José Chalub Leite, conforme me narrou o meu amigo Kleison. Assim está escrito o texto: “um crucifixo da marca I.N.R.I.”. Veja só o leitor que coisa! Jesus Nazareno Reis dos Judeus ganhou ares de grife internacional. E de fato é isso mesmo! A imagem de cristo é hoje o ícone mais conhecido no mundo! Alguém duvida?
Deixando de lado a religião e passando à política, Jejunat satis is qui paucis vescitur escis (Bem jejua quem mal come) poderia ser muito bem traduzida como Fome Zero, sem mais comentários, pois essa é de lascar!
Beati monoculi in terra caecorum (Em terra de cegos, quem tem um olho é rei) cai como uma luva em “Cuidando dos seus olhos”, resguardadas, é claro, todas as conotações e interpretações políticas que o leitor quiser dar.
Voltando ao que eleva o homem aos céus, para Radix omnium bonorum ecclesia (A igreja é a raiz de todos os bens) não haveria melhor tradução do que Pequenas igrejas, grandes negócios, dada a avidez com que se arrecada o dízimo em alguns segmentos religiosos.
E como a escrita já está ficando enfadonha e previsível, e tendo já dado o meu recado ao leitor, entendendo que o latim ainda é inatingível para alguns – não pensem que para mim não é –, sugerimos aos que duvidam de nossas versões um Dictionarium, para o qual damos aqui, para finalizar, uma tradução bem despojada, algo como Bom pra burro. Afinal, pra que serve mesmo um dicionário, não é?! E antes que eu me esqueça, também consultei um!
Até o próximo texto. RS! 


Wallace Rocha